quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Um chapéu, um tijolo e uma flor


O riso escancarado da solidão do sujeito moderno. A ácida crítica na confortável forma da comédia. O farsesco que quase chega a tocar a ferida dos recalques humanos. Um escorregar na casca de banana que não só dói, mas faz pensar e incomoda. A abertura da Mostra de Teatro Contemporâneo de Maringá, já em seu terceiro ano de realização, trouxe para o palco do Teatro Marista o espetáculo “Nada de Novo”, do grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões, de São Paulo, há mais de vinte anos na estrada.  Sob o mote de não existir nada de novo a se apresentar, dito por dois personagens no início do espetáculo, uma série de esquetes circenses e teatrais é apresentada de forma a conduzir o espectador a refletir sobre sua própria presença no teatro, sua alienação frente à ditadura da televisão, a necessidade da arte na sociedade, a crise da comunicação no seio familiar. Tudo numa linguagem para todos. E nada mais reflexivo para a abertura de uma mostra do que escancarar no palco, com tímidas papas na língua, o papel do teatro frente à era da tecnologia através de uma grande onda de risos e palhaçadas, que não busca identificação realista, pois para os mais maduros as piadas soaram como velhas conhecidas, escamoteadas num tempo/espaço em que o circo ainda era místico.




O público, convidado a fingir que não sabe que os atores fingem serem personagens que apenas estão fingindo ser algo que não o são, entra no mundo da imaginação, inserido entre o paradigma do ser e o do representar: mas essa transmutação imaginária necessária para se alcançar a fantasia não será utilizada para recontar as histórias dos Cavaleiros, Reis, Rainhas e Duques de Shakespeare, mas sim para adentrar o universo dos comediantes, onde não há nada de novo, mas um riso que ficou para trás na medida em que o circo perde o seu espaço no cotidiano. A extinção do riso se faz na metáfora sugerida a certa altura da peça pelo personagem de Hugo Possolo, aliás, de interpretação admirável: por trás de todo sorriso, há também a morte, a forma da caveira humana; e ao rirmos, deixamos transparecê-la.  É a dialética da existência, o outro lado da moeda, o cômico e o trágico imbricados em incomodar o espectador – que se esconde em si mesmo quando o Professor, interpretado por Possolo, pede para que seu assistente de palco (Raul Barreto) busque alguém da plateia para o seu teste teórico sobre como se faz rir, parte três. É catártico, é paspalhão, não poderia ser diferente. Mas ao botar o dedo na ferida da gargalhada calada, se mostra como reflexivo e dialético – e o cômico passa a se auto-discutir.
O reencontrar do espaço do cômico, da arte circense, do riso, do teatro, a possibilidade da existência da arte e da poesia na desenfreada velocidade cotidiana se fazem reverberar na cena em que a trupe coloca no palco um símbolo: um chapéu, utilizado em espetáculos cômicos desde Karl Valentin e Charles Chaplin, que representa o artista. Dentro dele há um tijolo, “que é pra dar peso no trabalho”. E no tijolo uma flor, que é pra não deixar “faltar poesia nessa merda”. E assim, longe da polidez do teatro clássico e mesmo das piadas senso-comuns vendidas como produtos no mercado do entretenimento global, o quarteto em cena consegue motivar simultaneamente as gargalhadas dos mais jovens e fazer cerrar as sobrancelhas dos mais velhos.



Não se pode deixar de mencionar a explícita preparação corporal dos atores alinhada à capacidade de manter o público na maré de tiradas cômicas, num domínio técnico de timing como pouco se encontra na comédia brasileira. Além disso, a rapidez em interagir com o público, com o espaço, com as eventualidades infinitas que ocorrem durante o espetáculo numa quase naturalidade realça o domínio da forma do improviso de seus integrantes. Enfim, com certo tom de teatro que se discute, autocritica e se reflete enquanto prática social, quase que num movimento de “morde e assopra”, a Mostra de Teatro Contemporâneo inaugurou suas atividades em 2013 reunindo uma heterogênea plateia que, agradavelmente, pôde compartilhar a quase extinta gargalhada, colocada em choque ao transformar o momento da diversão na mais ácida paspalhada social.



  Thaís Aparecida Domenes Tolentino faz parte do Grupo de Crítica Literária Materialista da Universidade Estadual de Maringá. 
  Fotos: Rafael Saes

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