quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Experiências com o teatro do AMOK

Por Julia Nascimento

 Se não for o amor, então é a bomba que vai nos unir (The Smiths)

Três peças do grupo carioca Amok fecharam a Mostra de Teatro Contemporâneo 2012. A primeira, Histórias de família, ambientada na antiga Iugoslávia, é a peça mais recente do grupo. Contextos tão diferentes não enfraquecem a relação direta da temática violência com o nosso cotidiano.

O mais novo trabalho do Amok Teatro passou por Maringá
O título Histórias de família pode sugerir narrativas da vida privada, conflitos intersubjetivos. Porém, a noção comum de família, como núcleo do privado, a par dos conflitos exteriores, parece não caber nesta peça. A violência na relação entre pai, mãe e filho(a) é produto de uma situação de guerra, intolerância e machismo.
 A narrativa é dividida em três momentos que se misturam, confundindo-se, como se fosse uma brincadeira de crianças se comportando como os adultos. É uma escolha quase metalinguística, já que evidencia a intenção de contar histórias. Histórias que tratam da violência buscando quadros comuns ao modelo tradicional de família de sociedade patriarcal: o pai provedor é a ligação da família com o mundo, enquanto a mãe funciona como mediadora entre pai e filhos.

Rosana Barros. Foto: Rafael Saes
A identificação, entretanto, não proporciona o mergulho total do espectador na trama. Afirmar que a narrativa é uma brincadeira de adultos, ver o rapaz dançando vestido de mulher - tão esdrúxulo que chega a ser cômico – e a presença da menina-cachorro no palco, garante ao espectador a ilusão cênica. Distanciamento necessário para a crítica.
O humor atinge o público justamente por ser transmitido a partir de cenas facilmente identificáveis pelo público. Essa identificação, reforçada pelo uso de expressões idiomáticas próprias do português, aproxima as narrativas vividas pela família às experiências familiares do espectador. Dá-se início da aproximação entre Brasil e antiga Ioguslávia – não estávamos tão distantes assim, afinal.
Vale lembrar que a violência não é somente física, é, principalmente, psicológica. E chega a tão ponto que culmina no desejo de eliminação dos representantes – dentro da família – desta violência: os pais. Ironicamente, no final de cada história, o(a) filho(a) mata os pais. As três experiências de morte – pais são mortos queimados, estrangulados e com tiros - podem representar a oposição da nova geração (filho) ao patriotismo exacerbado, aos moralismos antigos e intolerância que alimentam a violência. A morte dos pais possibilita a emancipação do sujeito em fuga do controle esmagador, além da debilidade nas relações em família.


Stephane Brodt e Beto Lemos em O Dragão. Foto: Rafael Saes
Em conjunto com Histórias de família e Kabul, O dragão faz parte da chamada Trilogia da Guerra. Na sexta-feira (24), em mesa redonda realizada pelo Professor Alexandre Flory (UEM), surgiu uma pergunta ao diretor Stephane Brodt a respeito da relevância de tratar a violência em Maringá, “uma cidade nem tão violenta assim”. Manchete no sábado (25) “Estudante da UEM é assassinado com oito tiros” é mais do que suficiente para responder a pergunta. Qual é a relevância de abordar a violência aqui? A mesma que tratá-la em qualquer outro lugar.
Aliás, é impossível ignorar a situação de bairros mais afastados como o Parque das Laranjeiras, Conjunto Ney Braga e Requião, além de cidades menores da redondeza, como Sarandi, onde se concentra um grande contingente da mão-de-obra da cidade.
 “Jerusalém é o mundo”. A fala da mãe judia em O dragão sintetiza este pensamento. O espetáculo aborda os conflitos entre Palestina e Israel. Melhor: os conflitos entre palestinos e judeus. Porque é focalizando o povo que o grupo Amok situa, novamente, a guerra no interior do núcleo familiar.

A atriz Márcia do Valle em cena de O Dragão. Foto: Rafael Saes
A peça orbita em volta da explosão de um ônibus, por um homem-bomba. A partir do relato do motorista, que ficou paraplégico, e da mãe de uma das meninas judias mortas pelo ataque, aproximam-se os dois povos pela dor da perda. “Onde estão as mães palestinas? (...) Somos todos vítimas da ocupação”, afirma a mãe judia.
A aproximação dos dois povos é materializada na cena em que os atores, que vivem os palestinos, apenas trocam de roupa para representarem os judeus, na frente do público. A troca de instrumento também é simbólica. A união, entre os dois povos, é contra o ‘dragão’ - deus dos mortos. Em nome dele se matam crianças.
O contexto de divergência entre Palestina e Israel é atualíssima. Segunda-feira (27), no dia posterior à apresentação da peça, circula a notícia “Israel prende três adolescentes por ataques a palestinos”. Três crianças explodindo pessoas.
Pensar em guerra é inevitável. Quando a guerra não se está declarada, pode-se afirmar a paz? O status do Brasil é de paz, mas em 30 anos quase 1 milhão de pessoas foram assassinadas. Números de guerra.

Cartas de Rodez, espetáculo mais premiado do Amok Teatro.
Foto: Rafael Saes
A terceira peça, encerrando a Mostra, traz as cartas escritas pelo dramaturgo, ator, poeta Antonin Artaud (1896-1948). A peça de 1998 é a mais antiga da Companhia, o espetáculo demonstra o intenso trabalho de expressão corporal do diretor Stephane Brodt.
Rodez é o hospício onde Artaud passou os últimos anos de sua vida. A ação, novamente, gira em torno da violência. O monólogo corresponde à situação de Artaud em Rodez, julgado louco por “um mundo de deformados”.
Estar louco é vibrar em frequência diferente da maioria, então se o mundo é o dos deformados, ser louco torna-se algo , “é bom estar doente”. Essa desarmonia entre o dramaturgo e o mundo ‘normal’ também se expressa por meio da música desarmônica e pelas gravações de uma voz angustiada. Trechos em francês, sem tradução, são usados em cenas que remetem ao tratamento de choque sofrido por Artaud e a sua psicose. O ambiente soturno é reforçado pela projeção de várias sombras do próprio Artaud, como se as figuras deformes e noturnas fossem os diabretes que lhe confundiam o juízo.
Foto: Rafael Saes
Apesar da expressão vampiresca, podemos perceber, a partir das cartas, um discurso lúcido. A biografia de Artaud é exposta por meio de um espetáculo metalinguístico, já que a pesquisa do grupo influencia, aliás, a montagem do espetáculo. São comuns denúncias de tortura – inclusive envolvendo tratamento de choque – em hospitais psiquiátricos. A violência e o sadismo, alimentados pelo poder ilimitado dos funcionários sobre os pacientes, suscita reflexões acerca de manifestações mais doentias da loucura humana.
Após assistir as três peças percebem-se algumas características próprias do grupo AMOK. Destacam-se aqui alguns destes. Os trechos encenados em outra língua, sem tradução, são uma ótima oportunidade para o contato do público com a cultura do povo representado. Apesar da mensagem desconhecida, percebe-se a energia e a cultura pela língua, música e dança.
Assim como nas duas outras peças, a importância da música é capital. A música pode ser considerada protagonista, já que não serve apenas como moldura da narrativa, mas auxilia na maneira como as histórias são narradas. É interessante pensar nestes elementos como marcadores culturais, que identificam o povo que está sendo tratado.
Por fim, na mesa redonda citada anteriormente, surgiu um comentário surpreendente: “A arte não serve para nada”. Depois de participar da Mostra de Teatro Contemporâneo só posso discordar.


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Crise em cena


Em Pequeno Tratado Sobre a Morte, apresentada pelo Grupo Teatro de Câmera (Maringá / PR), o público – restrito a cinquenta pessoas – é convidado fazer parte, no palco, do interrogatório entre uma mulher (Jucélia Cadamuro) e um homem, interpretado pelo diretor e autor do texto, Paulo Campagnolo. Entre eles, o abismo da ausência – não só a falta sentida na inexplicável experiência da morte, mas uma ausência sentimental existente na relação entre esses dois personagens. Construída à base de um claro rigor textual, os dramas subjetivos dos personagens são revelados através de um interrogatório denso, da intensidade do diálogo aos nervos, à luz fosca de um ambiente inebriado pela fumaça de cigarro que compõe o cenário.
             A cena, bastante realista, é também minimalista: de um lado uma pequena mesa com um rádio, alguns maços de cigarro e duas cadeiras revelam o ambiente cotidiano de uma sala qualquer. Frente a frente, é nesta sala onde os dois personagens resolvem suas pendências passadas através do interrogatório da personagem feminina. O retorno ao passado revela a distancia da dinamicidade das ações dramáticas: o mergulho é no fluxo de pensamento, no drama individual, numa espécie de flashback das memórias de um individuo conturbado, na ausência de movimentação dos atores. Do lado oposto da saleta, uma cama adornada com velas sugere uma espécie de ritual fúnebre, um desejo de se encontrar pela dimensão metafísica do homem, em plena crise existencial. Compondo a cena no palco, o público é convidado a observar o caos da instabilidade das relações, mas sem dele participar – a plateia transforma-se em lentes que observam o mundo psicológico, mas apagada pela iluminação sempre focada nos personagens. 

              O vazio sentimental das relações sedimentadas da vida burguesa é exposto nesse jogo de indagações entre os personagens. Fica clara uma espécie de neurose nutrida por expectativas não realizadas numa relação a dois pela personagem feminina. E o que vemos no palco é o grande clímax, talvez pouco crítico, de um drama pessoal bastante subjetivo. Nas peripécias do desejo de um relacionamento estável e burguês, o homem, que tira de si a autonomia de controlar seu próprio destino entregando ao outro a responsabilidade de sua autossatisfação, vê-se perdido ao ter suas expectativas frustradas.
            Enfim, ao propor a quebra da configuração tradicional do espetáculo teatral – eliminando a distancia entre palco e cenário – trazendo à cena o mergulho psicológico em oposição às cenas dinâmicas, Pequeno Tratado Sobre a Morte sugere uma pausa para a empatia subjetivista, cujos efeitos nem sempre são nocivos. Se nas peças apresentadas até então na Mostra de Teatro Contemporâneo de Maringá 2012, viu-se a quebra de todo o rigor formal em oposição a um teatro tradicional, como em Luis Antonio – Gabriela (Cia Mungunzá / SP) ou Foi Carmem (Grupo de Teatro Macunaíma & Centro de Pesquisa Teatral do SESC / SP), nesta, o rigor do trabalho textual emoldura as divagações psicológicas do homem em crise, comprovando uma interessante e rica heterogeneidade da mostra, que em muito contribui para o debate acerca do fenômeno teatral contemporâneo na cena brasileira.  

Thaís Tolentino: Professora na rede pública de ensino e integrante do grupo de Crítica Materialista na Universidade Estadual de Maringá.

 (Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

Intimidade do lar, íntimos do confronto


Por Ana Luiza Verzola
Bruce Araujo e Stephane Brodt em cena. Foto: Rafael Saes

Os movimentos são extremamente calculados, respeitando as batidas da música que nos carrega ao próprio palco, dançando a rotina destroçada. O menino brinca com uma bola, a mãe serve a janta e o pai lê jornal – aparentemente uma reunião normal, como acontece na maioria das casas. A coreografia é precisa e leve, e se repete em momentos esparsos em “Histórias de Família”, espetáculo da companhia Amok, do Rio de Janeiro, que encerra a “Trilogia da Guerra”, iniciada em 2008 e formada também por “O Dragão” e “Kabul” – este último infelizmente não se fez presente no palco da 2ª Mostra de Teatro Contemporâneo de Maringá. O elenco é formado pelos atores Bruce Araújo, Christiane Góis, Rosana Barros e Stephane Brodt, e a direção fica a cargo de Ana Teixeira e Brodt.

Uma maneira distinta de registrar a educação e a convivência. As bonecas ao fundo dão tom de uma infância devastada, que nos permite descobrir pouco a pouco o motivo já evidente: a guerra. Os reflexos são presenciados nas ações que chocam a cada história de família ali vivenciada – dizer que o espetáculo foi meramente encenado não daria total crédito à força de cada cena, de cada grito e cada momento de alívio ocasionado pela trilha sonora ambientada – temos um momento de contato com a Iugoslávia já destruída pelo combate. Os aproximados 100 minutos de peça não são domados pela total tensão da violência, pelo contrário. Reserva momentos de riso contido e gargalhadas permitidas. Configura-se em um conta-gotas de experimentação, onde compartilhamos dor, angústia e momentos hilários protagonizados por famílias areadas.

Foto: Rafael Saes

É engraçado observar como uma cena de sexo causa mais estranhamento ao público que as cenas de violência – é notável como somos mais passivos à destruição. O conforto com as cenas de brutalidade é tanto que a dança que indica o prelúdio da morte protagonizada pelo ator Bruce Araújo torna o momento do assassinato – dos próprios pais – uma ocasião regada a risos e sorrisos tortos. “Ele vai fazer isso mesmo?”. Os atores reconstroem no palco as consequências que uma vivência entremeada pela guerra ocasiona no lar, e de que forma a hierarquia doméstica é retratada, sempre colocando a mulher como o ponto fraco da estrutura familiar.

O pai desconta o ódio incontido na mãe e no filho. O filho aprende com o pai que pode também descontar na mãe, porque é mulher – ele mesmo profere, “mulher é mais fraca”. Mesmo ensinando a ação como verdade, o pai torna a repreendê-lo. A mãe submissa direciona os acontecimentos, preenche frases vazias como se ansiasse por preencher o vazio permanente na própria família. Por fim, trata uma refugiada da guerra como o próprio cachorro – a quem pode descontar as infâmias vivenciadas no ambiente. O cenário contempla as referências de um lar, com delimitação de paredes, televisão, uma janela. Ao fundo, um quadro negro perfurado por balas que tornam a existência da guerra mais presente. Bonecos mutilados em cadeiras alinhadas. O horror toma forma humana.

Christiane Góis e Rosana Barros. Foto: Rafael Saes

O destino dessas famílias encara a morte de perto, e quem sobrevive convive com as lembranças de marcas reais à própria pele, à própria sanidade. Os recortes de iluminação dramatizam falas proferidas com fatalidade. Ainda há um momento de musicalidade dos próprios atores. O conjunto do espetáculo funciona muito bem e faz refletir. Não fossem alguns integrantes da plateia, talvez não acostumados com ambientes teatrais ou mesmo se sentindo parte do espetáculo a ponto de contarem com uma educação fragmentada, evitam qualquer possibilidade de silêncio durante a apresentação da companhia Amok. Ignorando os olhares constrangidos dos que clamavam por um momento sem ruído diante de uma obra que marcava também a comemoração de aniversário do projeto Convite ao Teatro.

Ana Luiza Verzola é estudante de Jornalismo e estagiária no jornal O Diário do Norte do Paraná.

(Texto originalmente publicado no blog "Do singular ao plural" - www.luizacomz.wordpress.com)

domingo, 26 de agosto de 2012

O sagrado lugar do teatro na vida dos cidadãos

Atores da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes


Por Valmir Santos

Qual o papel de um festival de teatro para a cidade que o encampa? A pergunta é suscitada porque Maringá está às voltas com a segunda edição da Mostra de Teatro Contemporâneo, até domingo, uma iniciativa hercúlea de jovens idealistas da empresa Teatro & Ponto Produções Artísticas. O desafio, ousado, é inscrever a cidade no mapa das artes cênicas do país e reativar, em alguma medida, o espírito fraterno das décadas de 1970 e 1980 quando artistas profissionais ou amadores cativavam o público local para o encontro ao vivo.

Eis a essência milenar do teatro: como há cerca de 25 séculos, na Grécia Antiga, ou como naqueles nostálgicos anos 70 e 80 do século XX maringaense, a força imutável dessa arte está na mediação presencial do ator com o espectador, e vice-versa. Mesmo neste 2012, quando a vida digital só faz explodir em telinhas, gente de todos os quadrantes do planeta segue se encantando a cada noite mobilizada por aqueles corpos, imagens, sonoridades e palavras que conformam uma cena. Cidadãos que muitas vezes não se conhecem, das classes e crenças as mais variadas, se permitem ocupar o mesmo espaço e partilhar a experiência comum que pode revolver as mais sinceras e inesperadas emoções demasiado humanas.

Conheci Maringá duas semanas atrás, ministrando a oficina Cultura da crítica junto a estudantes ou profissionais de jornalismo, estudantes de letras e professores. Essa atividade formativa, paralela à programação de espetáculos da Mostra, permitiu-me vislumbrar a ousadia, nos planos da arte e da cultura, que está em curso neste território. Quando escrevo estas linhas, encontro-me no interior da Dinamarca, em Holstebro, acompanhando o Odin Week Festival, um projeto anual organizado pelo grupo Odin Teatret, do diretor Eugenio Barba, um dos teatrólogos mais influentes da segunda metade do século XX e inclusive neste XXI.

A modernidade da aprazível Holstebro, seu espaço urbano planejado e organizado de fato, remeteu um pouco ao viço da Maringá sessentona que agora se permite abrir à rubrica “teatro contemporâneo”. Ou seja, não é mais um mero ajuntamento de peças com rostos conhecidos da televisão, como os interiores do Brasil costumam ser infestados pelas comédias caça-níqueis (nada contra o gênero!). Quando se assume “teatro contemporâneo”, coloca-se em evidência o papel da arte pública e, sobretudo, o apreço pela inteligência do seu espectador, dos seus moradores.

Parte da cenografia da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes

O que está em jogo na Mostra é a valorização do pensamento artístico em sua expressão mais sublime: o de fomentar radicalmente a Arte maiúscula, na qual as raias da invenção não suportam a mediocrização da vida em pleno ambiente humanista da Cultura também maiúscula, aquela do presumido horizonte da cidadania, do compromisso com equipamentos públicos, a formação dos jovens e crianças, a simbiose com a educação, etc.

É um alento que as duas primeiras edições tenham acolhido criações da lavra do diretor Antunes Filho, coordenador do Centro de Pesquisa Teatral, o lendário CPT que completa 20 anos. A atual edição é pródiga na excelência artística ao apostar em repertórios de um núcleo já consolidado no panorama nacional, o grupo carioca Amok de Teatro, com três peças, inclusive a recém-estreada Histórias de família, escalada para apresentações em 2013 nos festivais de Avignon (França) e Edimburgo (Escócia), e a paulista Companhia Mungunzá de Teatro, com o fenômeno de público Luis Antonio - Gabriela.

Ou seja, são exemplos de criações inovadoras em suas abordagens e formas, abrindo ao público local uma janela para o que de melhor vem sendo produzido em São Paulo e Rio de Janeiro. Na verdade, a concentração nessas duas cidades do chamado eixo econômico-cultural constitui ponto falho da Mostra, demasiado paulista, inclusive. Felizmente, montagens significativas estão se espraiando por outros cantos e capitais do país, como Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. Para um projeto que se quer incluir, não dá para louvar só as “estrelas” do Sudeste.

Há pouco citamos o Festival de Avignon. A edição de julho passado, a 66ª, trouxe como identidade visual a silhueta de um homem com braço direito erguido, dedo em riste, vociferando com um megafone na mão esquerda. A jornada francesa sintonizou com o espírito do movimento global “ocupe” em praças, parques e calçadões. Isso tem a ver também com o pioneirismo de seu fundador, Jean Vilar (1912-1971). Em meados dos anos 1940, o ator e diretor francês deslocou o foco tradicional dos edifícios teatrais parisienses para uma cidade de contornos medievais, cercada por muralhas, ao sul do país, onde o principal espaço para as artes cênicas era, e ainda é, ao ar livre: o pátio do Palácio dos Papas, construção gótica usada como residência pontifícia no século XIV.

Ator da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes

Foi a partir da iniciativa de Vilar que a opção não convencional passou a disputar holofotes com o palco italiano, frontal, influenciando a percepção dos criadores e do público para todo o sempre. Evocar Avignon aqui tem a ver com a capacidade de um festival fundir-se à cidade e, mais sublime ainda, afetar a linguagem das artes cênicas que é, ou deveria ser, em suma, sua razão de existir.

Quando bem-sucedida, a influência de um festival cênico sobre moradores e visitantes, sua propulsão ao ato coletivo, à vida comum, traduz a consciência da responsabilidade histórica da ação cultural. Programar um festival tem muito a ver com ciência e arte, ou seja, com reflexão e intuição pela equipe liderada por articulador (ou mais de um) que se espera sensível e informado.

Vislumbramos essa potencialidade na evolução da Mostra de Teatro Contemporâneo. Em sua definição para o verbete “festival”, o teatrólogo francês Patrice Pavis afirma que, às vezes, nos esquecemos de que esse adjetivo também encerra o sentido de festa, referendando datas ou consagrações religiosas desde a Antiguidade, como Osíris no Egito e Dionísio na Grécia: Para o estudioso, esse tipo de evento pode atestar “uma profunda necessidade de um momento e de um lugar onde um público de ‘celebrantes’ se encontre periodicamente para tomar a pulsação da vida teatral (...) e, mais profundamente, ter a sensação de pertencer a uma comunidade intelectual e espiritual encontrando uma forma moderna de culto e de ritual”. Eis, portanto, a dimensão sagrada dessa arte ancestral que toca à cidade de Maringá.

Valmir Santos é jornalista e pesquisador de teatro em São Paulo.

(Artigo originalmente publicado em O Diário, de Maringá, caderno D+, edição de 25 de agosto de 2012, sob o título No mapa da cultura).



Sequência de Verônica Gentilin em Luis Antonio - Gabriela - fotos: Rafael Saes

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Atração do dia 26/08 - "Cartas de Rodez" (Amok/RJ)



“Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”. 
Antonin Artaud

O espetáculo é uma seleção de cartas do ator, poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud à seu psiquiatra, Doutor Ferdière, durante o período em que esteve internado como louco no manicômio de Rodez, de 1943 a 1946.
As cartas são um diálogo desesperado de Artaud com seu médico e, através dele, com toda a sociedade.
No espetáculo, não procuramos imitar Artaud nem nos separar completamente dele. Trata-se de uma transposição para a cena do poeta e de sua situação.
A construção deste espetáculo nos levou a estabelecer um diálogo teatral entre Antonin Artaud e Etienne Decroux: dois homens pertencentes à mesma geração, que romperam com seus predecessores e fundaram o trabalho do ator sobre uma ciência precisa e rigorosa do corpo. Quisemos confrontar suas pesquisas, suas visões, imaginar o ator como um hieróglifoanimado, desenhando o espaço com seus gestos e golpeando forte o ar com o sopro. 



Cartas de Rodez estreou em 1998 no Instituto Philipe Pinel no Rio de Janeiro e recebeu o prêmio Shell de Teatro de melhor direção para Ana Teixeira e melhor ator para Stephane Brodt.
O espetáculo recebeu também o prêmio Mambembe de melhor espetáculo, além da indicação de melhor direção para Ana Teixeira.

"'Cartas de Rodez' é um espetáculo emocionalmente e excepcionalmente cuidado. É teatro no que ele faz de melhor: por intermediário de uma rica experiência estética, nos ensina (latu sensu) um pouco mais a respeito de comportamentos humanos e conduz à reflexão."
Barbara Heliodora - O Globo / Rio de Janeiro


"Ana Teixeira realiza um trabalho simplesmente notável. Trata-se de uma montagem irretocável e que nos leva a crer que estamos diante de uma encenadora com belíssima trajetória a sua frente. Quanto a Stephane Brodt, o público carioca tem a rara oportunidade de ver em cena um ator, na plena acepção do termo. Brodt possui vastíssimos recursos, tanto vocais como corporais e a isto somarmos uma impressionante capacidade de entrega, o resultado só poderia ser uma atuação que o espectador jamais esquecerá. Simplesmente imperdível."
Lionel Fischer - Tribuna da Imprensa / Rio de Janeiro

"A dualidade é interpretada a fundo por Brodt, num impecável trabalho onde o físico e o gestual foram medidos com exatidão, sem exageros, apoiados no domínio da voz, além dos delírios de Artaud."
Graciela Pedraza - La Voz del Interior / Argentina



Autor: Antonin Artaud
Tradução: Llilian Escorel
Adaptação: Ana Teixeira / Stephane Brodt
Direção: Ana Teixeira
Elenco: Stephane Brodt
Cenário: Ana Teixeira
Iluminação: Wilson Reiz / Stephane Brodt
Música: Charles Ives,  Shostakovich.
Figurinos: Amok Teatro
Projeto gráfico: Paolo Lima
Divulgação: Pangéia Comunicações
Fotos: Renata Collaço

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Atração do dia 25/08 - "O Dragão" (Amok/RJ)




"Dois sonhos podem se mover livremente sob um mesmo céu?"
Mahmoud Darwich



O espetáculo O Dragão é uma criação sobre o tema da guerra, a partir de fatos e depoimentos reais. A pesquisa inicial nos levou a diversas regiões, até chegarmos ao trágico conflito entre israelenses e palestinos. Neste pequeno território no coração do Oriente Médio é travada uma guerra que se tornou emblemática de muitas outras. 
Através do olhar de quatro personagens - dois palestinos e dois israelenses - abordamos a intimidade da dor infligida pela guerra. Quisemos quebrar a visão distanciada da mídia e da análise dos especialistas, que nos apresentam os fatos, para fazer surgir personagens. Interrogar a realidade através do que eles vêem e sentem, fazendo ouvir as vozes que pouco escutamos.



Propusemos olhar esta complexa situação entre israelenses e palestinos, sem nenhuma hierarquia, nenhuma classificação. O que colocamos em jogo são testemunhos de destinos confiscados pelo horror. Procuramos revelar o interior das pessoas nesta experiência comum da dor, onde as diferenças não separam mais, mas simplesmente nos distingue e religa.
O Dragão é um espetáculo sobre o diálogo e a paz; sobre a possibilidade de encontrar atrás da crueldade e da violência uma real humanidade.
O espetáculo estreou em 2008, foi indicado pelo jornal O Globo como um dos melhores espetáculos do ano e foi indicado ao prêmio Quem de melhor ator para Stephane Brodt e melhor atriz para Fabianna de Mello e Souza.



"Comovente Apelo ao Entendimento - Impondo à cena uma dinâmica seca e austera, Ana Teixeira constrói um espetáculo memorável, sob todos os aspectos. No tocante ao elenco, Fabianna de Mello e Souza desempenha com segurança e vigor suas duas personagens, o mesmo ocorrendo com Kely Brito e Cassiano Gomes, em participações menores. Quanto a Stephane Brodt, o ator exibe performances inesquecíveis. (...) É realmente um privilégio assistir a um intérprete de execução que, invariavelmente, oferece tudo de si à plateia, conseguindo ao mesmo tempo emocioná-la e levá-la a refletir. A destacar também a vital participação de Carlos Bernardo, tanto no que diz respeito à música quanto a sua execução, fundamentais para o êxito desta montagem imperdível, que merece ser prestigiada de forma incondicional pelo público carioca."
Lionel Fischer - Tribuna da Imprensa / Rio de Janeiro

"Beleza Como Um Bom Instrumento de Reflexão - O Dragão é um espetáculo de grande impacto, de considerável beleza, que faz do teatro instrumento de reflexão, ao apresentar sem comentários - porém com grande consciência - a maldição que é a guerra. Deve ser visto por todos aqueles que ainda se interessam pela sobrevivência da Humanidade."
Barbara Heliodora - O Globo / Rio de Janeiro


Direção: Ana Teixeira
Montagem do texto: Ana Teixeira / Stephane Brodt
Elenco: 
Wafa e Nurit
Said e Shimon
uma palestina e Yael l      
um palestino
Fabianna de Mello e Souza
Stephane Brodt
Kely Brito 
(em alternância com Rosana Barros)
Cassiano Gomes (2008)
Thiago Guerrante (2009)
Bruce Araujo

Música:

Carlos Bernardo (2008)
Beto Lemos (em alternância com Rudá Brauns)
Assistente de direção: Kely Brito
Iluminação: Renato Machado 
Figurino: Stephane Brodt
Cenário: Ana Teixeira
Projeto gráfico: Paulo Lima
Costureira: Dora Pinheiro
Cenotécnicos: Equipe Hélice, Adílio Atos e André Sales
Professora de árabe: Samaher Omran Muhmed
Professora de hebraico: Miriam Weitzman
Produção: Galharufa Produções
Produção Amok Teatro: Erick Ferraz 
Instrumentos: Alaúde, Darbuka (percussão); Bodhran (tambor do Paquistão); Viola de Gamba.





quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Atração do dia 24/08 - "Histórias de Família" (Amok/RJ)


“Histórias de Família” é a última parte do projeto “Trilogia da Guerra”, que também inclui os espetáculos “O Dragão” e “Kabul”. Nesta trilogia, o Amok Teatro apresenta três espetáculos independentes, três retratos da guerra, três diferentes experiências de linguagem cênica.
“Histórias de Família”, da dramaturga sérvia Biljana Srbljanovic, trata da guerra a partir do olhar da infância. Nas ruínas da Iugoslávia destruída pela guerra, quatro personagens brincam de família, reproduzindo o comportamento delirante de adultos desorientados. Pouco a pouco revela-se a lógica da guerra, criada e mantida pelo poder político, que se manifesta em todos os níveis da sociedade. Por meio das brincadeiras, são percebidas fraquezas e medos. O jogo termina e logo tudo recomeça. A violência da brincadeira substitui a dos combates e, nesse ritual, à imagem do clima político, a tensão entre todos é extrema.

O espetáculo fala de uma sociedade saturada de ódio, que a violência e o nacionalismo levaram à ruína. Essas histórias são, ao mesmo tempo, a imagem da situação da ex-Iugoslávia e a imagem de qualquer sociedade.
FICHA TÉCNICA
Texto: Biljana Srbljanovic
Tradução: Ana Teixeira e Jadrana Andjelic
Direção e Adaptação: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Elenco: Bruce Araujo, Christiane Góis, Rosana Barros e Stephane Brodt
Iluminação: Renato Machado
Cenário e Figurino: Stephane Brodt
Concepção Audiovisual: Eveline Costa
Trilha Sonora: Amok Teatro
Operação de Luz: Rodrigo Maciel
Operação de Som: Telma Lemos
Fotos: Andréia Teixeira e Ângelo Antonio Duarte
Produção: Erick Ferraz