terça-feira, 14 de agosto de 2012

De Nelson Baskerville para Gabriela: o eterno retorno


O ator Marcos Felipe / foto: Bob Sousa

Exercício crítico por Thaís Tolentino

Em Luis Antonio – Gabriela (Companhia Mungunzá / SP), o universo transexual é desmistificado no palco, colocando aos olhos do espectador cenas de um cotidiano ainda pouco debatido na sociedade, mesmo que em tempos de declarada modernidade. Longe de enveredar pelo caminho da banalização da sexualidade ou pelo tom apelativo da caricatura como artifício de chamar a atenção do público, o diretor Nelson Baskerville – cujo conteúdo biográfico é transformado no enredo da peça – conjuga na forma dramática os elementos necessários para, a partir da vida de Nelson, desconstruir as distancias morais que ainda perduram entre o universo trans e o debate social.

Em um dos cantos do palco, um relógio gira em sentido anti-horário – o tempo da peça é um retorno aos calos do passado, ao incomodo da ignorância que todos os dias criam submundos marginalizados. E se Nelson (Verônica Gentilin) decide para lá retornar como uma tentativa de encarar as lacunas entre ele e seu irmão mais velho, Luis Antonio, assumindo-se mais tarde como Gabriela, o publico vê-se diante de sua própria moral e não escapa de compartilhar com Nelson um pedido de desculpas. O retorno ao passado de Luis Antonio ultrapassa o pedido de desculpas pessoal de Nelson: torna-se um pedido de desculpas de toda uma sociedade imbuída de valores estéticos, morais, religiosos, entre outros.

A fragmentação das cenas não só quebra a ação dramática e a linearidade temporal, mas coloca no palco as várias facetas e os vários pontos de vista do drama de Luis Antonio. A simultaneidade dos atos faz com que o publico não apenas encare Luis Antonio sendo espancado por seu pai, Paschoal, mas que veja os outros personagens executando os sons das pancadas, enquanto o pequeno Nelson, em outro canto do ambiente, agoniza com medo de tornar-se mulher, após ter sido abusado sexualmente pelo irmão. Além disso, o uso da câmera em cena faz com que o presente do palco seja transmutado em passado no telão – elemento essencial na construção formal da peça, exercendo a função de uma espécie de túnel do tempo, os olhos que viram o que poucos quiseram enxergar.

A seriedade temática da peça é construída a partir dos pedaços de um passado, das cenas fragmentadas, dos dramas relativizados. Corajosamente, Nelson retrata o universo de Luis Antonio sem ser repelido pela banalidade da cena fortuita. De Luis Antonio a Gabriela, o publico vê esfacelar no palco as cortinas morais que tapam e aniquilam determinados grupos sociais. Nelson deixa claro: se pudesse voltar ao passado, faria diferente, e acaba por encontrar no palco e nos elementos formais de sua peça a possibilidade desse retorno.

Thaís Tolentino é professora na rede pública de ensino e integrante do grupo de Crítica Materialista na Universidade Estadual de Maringá.


(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo)

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