terça-feira, 14 de agosto de 2012

Um lugar para Gabriela

O ator Marcos Felipe em Luis Antonio - Gabriela / foto: Rafael Saes


Exercício crítico por Alessandra Sardeto

Dizer que Luis Antonio - Gabriela, da Companhia Mungunzá de Teatro, sob direção de Nelson Baskerville, é um espetáculo maravilhosamente genial soa hiperbólico e tendencioso, mas os prêmios e indicações para essa peça condizem à exagerada adjetivação. O reconhecimento e repercussão fazem com que uma atmosfera e expectativa sejam criadas, e, nesse caso, correspondidas. Não há como manter-se imune e imparcial; a criação cênica seduz e toca o público.

A história se passa na década de 60. Luis Antonio era o irmão mais velho de Maria Cristina e Nelson – o diretor da peça-. O primeiro era fruto de um caso extraconjugal de seu pai, um rígido militar, que posteriormente o adotou. O segundo era “fruto da morte”, já que sua mãe morrera durante seu parto. Ambos cresceram juntos. Por vezes, o primogênito mostrava ao caçula os prazeres proporcionados pelo sexo, numa instintiva experimentação. Nelson, apesar de ingênuo, sentia-se invadido e com medo. Não era como o irmão, não queria ser condenado como ele. Doracy, a madrasta, descreve Luis como uma criança linda, risonha, feliz e afeminada – motivo de ojeriza do pai.

As crianças cresciam em um ambiente de repressão, violência física e “moral”, e a “condição “de Luis fazia com que isso se agravasse. Cansado de represálias, foi passear pelo lado selvagem (cena musicada com Walk on the wild side, de Lou Reed). Ainda adolescente Luis Antonio entrega-se à prostituição. Pouco depois, Pascoal morre e Nelson tem o último contato com o irmão.

Mudando para Espanha, Luis Antonio transformou-se em Gabriela, e procurou um lugar onde seria feliz e viveria sem amarras sociais. Desvinculou-se da família, permaneceu durante vinte anos sem dar notícias. Em Bilbao, viveu seu estrelato como travesti, adoeceu e morreu, sem ver ou falar com o irmão caçula.

As relações intra e interpessoais dos personagens são conflituosas e dominam as ações da narrativa fragmentada. É uma história que envolve perdas, conflitos familiares, culpa (mesmo não havendo culpados), busca por satisfação, arrependimento, repressão (individual e social), transformação, desejos e aceitação. Dentro do contexto sócio-histórico, determinante para o encaminhamento do drama, ser homossexual era um crime, uma imoralidade, uma vergonha para a sociedade da época.

Até então temos uma narrativa comovente e real, passível de ser contata por meio da literatura ou do cinema. Mas Nelson, influenciado por sua formação artística, escolhe o teatro para expor seu álbum pessoal e pedir desculpas a Gabriela. O que chama atenção neste espetáculo é a forma com que esse surpreendente documentário dramático é mostrado. A rica síntese de elementos artísticos juntamente com o acervo pessoal do diretor constrói a intensa profundidade dramática, e causa forte impacto no público. A arquitetura, a pintura, a criação de espaços, a iluminação, o figurino, a dança, a televisão e a música se fundem no palco e se harmonizam de um modo intenso e particular. Fotografias, depoimentos, correspondências da família são colocados em cena, reforçando a história contada e a coragem do diretor.

Ousado e humano, Luis Antonio - Gabriela é uma dose cavalar de teatro que pensa sobre o modo de fazê-lo, o porquê ir até ele, e a sua função como arte. Sem amarras, sem pudor, cria uma estética particular e desarma julgamentos. A peça é “supernaturalista” e ao mesmo tempo humanizadora. Nelson usa o teatro para homenagear, se justificar, pedir desculpas a seu irmão. Enquanto diretor é também um transformista, pois transforma de modo surpreendente a realidade por meio do teatro. O espetáculo é o lugar onde ele coloca Gabriela, e o lugar onde ela deve estar.



Cena do espetáculo da Companhia Mungunzá / foto: Rafael Saes
 
Alessandra Sardeto é graduanda em Letras e Literaturas correspondentes, pela Universidade Estadual de Maringá.

(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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