sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Piano que liberta

A atriz Lorena Lobato / Divulgação


Exercício crítico por Wilame Prado

Com atuação impecável, a atriz Lorena Lobato fez a plateia rir e chorar no espetáculo Sem conserto, apresentado hoje e amanhã, 8 e 9, no Teatro Barracão, pela 2ª Mostra de Teatro Contemporâneo em Maringá. Claro que, para isso, teve o tempo todo ao seu lado os encantamentos que só um piano bem tocado (diga-se de passagem, pelo músico Daniel Grajew) é capaz de proporcionar, transformando o espetáculo em um chamado teatro-concerto ao recitar as principais obras da música erudita. Sem conserto é curto e direto como um conto. A diferença é que este conto já vem com brilhante trilha sonora (atrapalhada apenas pelo barulho de uma feira sendo desmontada bem ao lado de um teatro sem qualquer isolamento acústico).

Com seu poder de fazer as pessoas se deixarem levar pelo enredo da história de Anna (Lorena) – uma mãe apaixonada por música que quer ir até as últimas consequências do absurdo para transformar o filho meio bobalhão de 12 anos (interpretado por Grajew) em um grande musicista – a atriz, que já foi vista no cinema em filmes como O cheiro do ralo (2007) e Hotel Atlântico (2009), preenche todo o palco com vida. Anna é uma russa, mas precisa se comunicar em português com o público. Para isso, Lorena constrói e interpreta numa língua com forte sotaque do leste europeu, o que faz a plateia suspeitar se ela é realmente brasileira. Sua beleza lânguida e alva, seu vestido preto e sua genialidade em cima do palco a transformam em uma verdadeira russa.

O espetáculo é um monólogo, mas Lorena não está sozinha. E se Grajew não participa falando, grita ao teclar no piano Mozart, Bach, Beethoven, Scriabin, Chopin, Liszt e tantos outros, exaltando, ainda mais, a emoção do discurso tragicômico da russa. O próprio piano também pode ser considerado um personagem do espetáculo. Quando Anna tira as tampas do instrumento musical, é possível flagrar o cérebro do piano trabalhar e observar seus movimentos internos Mais do que uma homenagem à Rússia, como Lorena descreveu o espetáculo, Sem conserto é também uma homenagem à música.

É a descrição da relação que Anna tem com pianos desde pequena que transforma algumas passagens do monólogo em inesquecíveis. Após alguns cálices de vodka e se deixando levar por uma emoção cortante, o relato da infância dela, quando morava na casa dos avós, local onde não havia móveis e sim apenas pianos, já que o avô era consertador de pianos, é o momento pelo qual se percebem as primeiras lágrimas saindo de um pequeno público que não lotou o Teatro Barracão. Quem não ocupou as cadeiras que ainda restavam no teatro perdeu Anna fazendo corações doerem ao dizer que, na inocência da infância, enquanto o pai vendia coisas com um apito na boca e pedalando uma bicicleta pelas ruas, o seu brinquedo era o piano, a sua máquina de escrever era um piano e até mesmo a sua cama tivera sido em um piano velho, onde o avô improvisara um colchãozinho dentro da carcaça do instrumento musical.

Outro trecho arrebatador do monólogo se dá quando a russa começa a explicar suas artimanhas para fazer com que o filho, ainda no seu ventre, já fosse se acostumando com a música clássica. Na primeira amamentação do menino, é repousando suas mãozinhas no teclado do piano que Anna diz fazê-lo entender, enquanto mamava, que seria a música que o alimentaria para a vida toda. E se, no começo, alguns poderiam até fazer juízo negativo de uma mãe que chega a tirar o filho da escola para que ele se dedique apenas ao piano, é contando a história do pai de Mozart, que chegava a bater no filho para que tocasse piano, que Anna faz a indagação mais importante do espetáculo: “Esse pai aprisionou ou libertou Mozart?”. A história da música clássica dá a resposta. Lorena, também autora do texto de Sem conserto, talvez quis dizer, no papel de Anna, que não apenas a música, mas toda e qualquer tipo de arte, pode ser sim algo que liberta a alma.

Wilame Prado é repórter e cronista do Diário de Maringá.

(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

Nenhum comentário:

Postar um comentário