quarta-feira, 8 de agosto de 2012

As três Carmens


Patrícia Carvalho é a Passista / foto: Rafael Saes

Exercício crítico por Julia Nascimento

Ao som do Taiko – tambor japonês – termina a peça Foi Carmem (2005). Tal som ancestral remete ao tempo antigo de rituais, quando o homem experimentava a evocação de espíritos a partir de manifestações coletivas de dança e canto. Surpreendentemente, a peça se baseia na vida da artista Carmem Miranda (1909-1955), símbolo do clichê a respeito da identidade sul-americana, a própria personificação da tropicalidade caricata a serviço do projeto norte-americano de Good Neighbor Policy, a política oficial da boa vizinhança.

A junção de duas culturas tão diferentes – a ocidental e a oriental – traz à tona a humanização de uma mulher quase mercadoria, que precisa sustentar a alegria a todo custo, como num culto à felicidade. A presença de elementos do teatro japonês Nô é o responsável pela ressignificação dos signos normalmente atribuídos ao universo carnavalesco de Carmem.

Os primeiros movimentos de dança aparecem por meio da Menina-Carmen (Mariah Teixeira) que representa o sonho de criança, a brincadeira e ingenuidade em relação à carreira de artista. Acompanhando a menina, estão três figuras que participam do seu vislumbre do futuro e que instauram a primeira esquizofrenia da peça. Todas estão vestidas de preto, como em luto. As duas mulheres aproximam-se da imagem das gueixas - maquiagem forte, andar particular. Em sua contenção emocional, as acompanha um senhor japonês. Essas personagens, que se estabelecem como um coro mortuário, são símbolos do mau agouro em relação à Carmen.

Além da menina Carmen, temos mais duas representações da artista, como se nela se encerrasse outras facetas não conhecidas pelo público. Uma Carmen adulta do brilho, vestido dourado, muita purpurina, cor, balangandãs, mas que causa um forte estranhamento por ter seu rosto totalmente coberto por um tecido preto, tipicamente japonês. Esta imagem, que causa no espectador certa asfixia – já que é quase impossível que a atriz estivesse enxergando ou respirando com facilidade –, pode ser associada ao Yokai.

Yokai é o espírito, sem diferenciação entre bom ou mau, que aparece na mitologia japonesa muitas vezes disforme, podendo ter pés ou mãos virados. É nesta perspectiva que a Carmen Yokai (Emilie Sugai) apresenta o Butô – dança das trevas – em homenagem do diretor Antunes Filho ao coreógrafo e dançarino japonês Kazuo Ono (1906-2010).

A terceira figura da Carmen aparece como num ritual de exorcismo, em que o butô se mistura com os traços de negritude da personagem. A dança ainda lembra uma tentativa de Carmen Miranda de se desvencilhar das correntes, remetendo à escravidão. Os próprios balangandãs podem ser aproximados das correntes usadas nos pulsos. A escravidão representa o trabalho exaustivo, tanto físico devido ao figurino exagerado e pesado, quanto psicológico.

O encontro entre a Carmen Escrava (Patrícia Carvalho) e o Malandro (Lee Taylor) dá-se na tentativa da artista de emocionar, a todo custo, o homem que permanece insensível ao seu esforço, como se captasse a falta de espontaneidade igualmente observada quando a dançarina perde o compasso da dança ou samba ao som de uma música quase fúnebre.

Essas figuras/personagens encerram a discussão a respeito da identidade de Carmen Miranda. A artista portuguesa cresceu e foi durante toda a vida considerada brasileira, apesar de trabalhar na indústria hollywoodiana, mantendo residência nos Estados Unidos até a sua morte. Brasileira? Portuguesa? Americana? Essa confusão identitária é anunciada ainda no título Foi Carmen: o que foi Carmen? Quem foi Carmen? A reificação de Carmen Miranda, produto de uma época de reafirmação do capitalismo selvagem é a base do trágico na peça.

Julia Nascimento é graduanda do curso de Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e integrante do grupo de pesquisa Crítica Literária Materialista.

(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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