sábado, 11 de agosto de 2012

Música e uns trocados: o resto, deixa para lá...


Daniel Grajew e Lorena Lobato / foto: Rafael Saes

Exercício crítico por Thaís Tolentino

Impossível seria compreender as razões de Anna, personagem interpretada pela atriz, cantora e bailarina Lorena Lobato, sem deixar-se levar pelo universo sinestésico da música clássica. De um lado, uma mãe cujas aspirações projetam-se na imagem do filho. De outro, ao piano, guiado pela autoridade incisiva da matriarca, um filho, interpretado pelo ator e músico Daniel Grajew, cuja identidade conhece-se apenas através da ótica materna. No palco, os dois atores, o instrumento de corda e uma viagem através de composições clássicas. E se a música mostra-se como insumo vital à existência de Anna, é ela que sustenta todo o curso da ação dramática em Sem conserto, peça apresentada na sexta-feira, 10, no Teatro Barracão, durante a Mostra de Teatro Contemporâneo de Maringá 2012.

A peça inicia-se com uma curiosa pontuação da personagem Anna: prestar uma espécie de consultoria acerca do processo de formação de filhos. Para ela, estes são quase que experimentos humanos e se, hoje, não se têm mais gênios como Ludwig van Beethoven (1770-1827), Franz Liszt (1811-1886) ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a culpa são dos assistentes sociais, que tiram dos pais a autonomia no processo de formação. E, para Anna, tal processo exige rigidez, técnica, aperfeiçoamento e até mesmo uma dose de loucura – para o espectador, ele confunde-se com uma espécie de neurose materna. O diálogo com o público é direto e o distanciamento entre o palco e a plateia atenuam-se na medida em que a personagem exibe o seu prodígio. Prodígio, porém, gênio apenas depois que compor suas próprias músicas.

No piano, um filho. E na ordem de importância na vida de Anna, aquela parece superar a presença deste. A mãe apenas reconhece seu primogênito enquanto mediado pela música, e quando este furta-se em executar a ordem da matriarca, vê-se acuado pelo olhar impositivo da mentora. O filho, em silêncio durante toda a peça, recua-se no piano, franzino e encurvado, pondo-se a executar de maneira brilhante as composições ditadas pela mãe. É na dinamicidade da música clássica que evidencia-se aos espectadores a grande genialidade do garoto, sem que esta seja reconhecida pela figura feminina. Embora o enfrentamento entre mãe e filho tenha causado sensações de riso no público, especialmente na cena em que esta sobe no banco do piano para expressar sua superioridade em relação a ele, a densidade psicológica da cena transporta o espectador para o ponto de vista do garoto, cuja voz projeta-se através da sua habilidade com as mãos e nada mais.

Anna vê na música sua única esperança de vida: alimento não só para a alma, de retorno aos êxtases da infância na casa do avô antes de sua fuga à Argentina, mas também para o corpo físico, convidando, num tom ligeiramente irônico, os espectadores a colaborarem monetariamente com a apresentação, já que as habilidades exibidas pelo garoto são também a forma de subsistência da família. É na música que, afinal, Anna encontrou a razão para que as atrocidades do contexto da guerra na Rússia pudessem ser superadas. A razão de Anna encontra-se materializada na forma de um filho; um filho que ela mesma construiu. Sua vida resume-se aí, seu filho, sua música. O resto, “Deixa pra lá...”.

Thaís Tolentino é professora na rede pública de ensino e integrante do grupo de Crítica Literária Materialista na Universidade Estadual de Maringá.

(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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