quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Experiências com o teatro do AMOK

Por Julia Nascimento

 Se não for o amor, então é a bomba que vai nos unir (The Smiths)

Três peças do grupo carioca Amok fecharam a Mostra de Teatro Contemporâneo 2012. A primeira, Histórias de família, ambientada na antiga Iugoslávia, é a peça mais recente do grupo. Contextos tão diferentes não enfraquecem a relação direta da temática violência com o nosso cotidiano.

O mais novo trabalho do Amok Teatro passou por Maringá
O título Histórias de família pode sugerir narrativas da vida privada, conflitos intersubjetivos. Porém, a noção comum de família, como núcleo do privado, a par dos conflitos exteriores, parece não caber nesta peça. A violência na relação entre pai, mãe e filho(a) é produto de uma situação de guerra, intolerância e machismo.
 A narrativa é dividida em três momentos que se misturam, confundindo-se, como se fosse uma brincadeira de crianças se comportando como os adultos. É uma escolha quase metalinguística, já que evidencia a intenção de contar histórias. Histórias que tratam da violência buscando quadros comuns ao modelo tradicional de família de sociedade patriarcal: o pai provedor é a ligação da família com o mundo, enquanto a mãe funciona como mediadora entre pai e filhos.

Rosana Barros. Foto: Rafael Saes
A identificação, entretanto, não proporciona o mergulho total do espectador na trama. Afirmar que a narrativa é uma brincadeira de adultos, ver o rapaz dançando vestido de mulher - tão esdrúxulo que chega a ser cômico – e a presença da menina-cachorro no palco, garante ao espectador a ilusão cênica. Distanciamento necessário para a crítica.
O humor atinge o público justamente por ser transmitido a partir de cenas facilmente identificáveis pelo público. Essa identificação, reforçada pelo uso de expressões idiomáticas próprias do português, aproxima as narrativas vividas pela família às experiências familiares do espectador. Dá-se início da aproximação entre Brasil e antiga Ioguslávia – não estávamos tão distantes assim, afinal.
Vale lembrar que a violência não é somente física, é, principalmente, psicológica. E chega a tão ponto que culmina no desejo de eliminação dos representantes – dentro da família – desta violência: os pais. Ironicamente, no final de cada história, o(a) filho(a) mata os pais. As três experiências de morte – pais são mortos queimados, estrangulados e com tiros - podem representar a oposição da nova geração (filho) ao patriotismo exacerbado, aos moralismos antigos e intolerância que alimentam a violência. A morte dos pais possibilita a emancipação do sujeito em fuga do controle esmagador, além da debilidade nas relações em família.


Stephane Brodt e Beto Lemos em O Dragão. Foto: Rafael Saes
Em conjunto com Histórias de família e Kabul, O dragão faz parte da chamada Trilogia da Guerra. Na sexta-feira (24), em mesa redonda realizada pelo Professor Alexandre Flory (UEM), surgiu uma pergunta ao diretor Stephane Brodt a respeito da relevância de tratar a violência em Maringá, “uma cidade nem tão violenta assim”. Manchete no sábado (25) “Estudante da UEM é assassinado com oito tiros” é mais do que suficiente para responder a pergunta. Qual é a relevância de abordar a violência aqui? A mesma que tratá-la em qualquer outro lugar.
Aliás, é impossível ignorar a situação de bairros mais afastados como o Parque das Laranjeiras, Conjunto Ney Braga e Requião, além de cidades menores da redondeza, como Sarandi, onde se concentra um grande contingente da mão-de-obra da cidade.
 “Jerusalém é o mundo”. A fala da mãe judia em O dragão sintetiza este pensamento. O espetáculo aborda os conflitos entre Palestina e Israel. Melhor: os conflitos entre palestinos e judeus. Porque é focalizando o povo que o grupo Amok situa, novamente, a guerra no interior do núcleo familiar.

A atriz Márcia do Valle em cena de O Dragão. Foto: Rafael Saes
A peça orbita em volta da explosão de um ônibus, por um homem-bomba. A partir do relato do motorista, que ficou paraplégico, e da mãe de uma das meninas judias mortas pelo ataque, aproximam-se os dois povos pela dor da perda. “Onde estão as mães palestinas? (...) Somos todos vítimas da ocupação”, afirma a mãe judia.
A aproximação dos dois povos é materializada na cena em que os atores, que vivem os palestinos, apenas trocam de roupa para representarem os judeus, na frente do público. A troca de instrumento também é simbólica. A união, entre os dois povos, é contra o ‘dragão’ - deus dos mortos. Em nome dele se matam crianças.
O contexto de divergência entre Palestina e Israel é atualíssima. Segunda-feira (27), no dia posterior à apresentação da peça, circula a notícia “Israel prende três adolescentes por ataques a palestinos”. Três crianças explodindo pessoas.
Pensar em guerra é inevitável. Quando a guerra não se está declarada, pode-se afirmar a paz? O status do Brasil é de paz, mas em 30 anos quase 1 milhão de pessoas foram assassinadas. Números de guerra.

Cartas de Rodez, espetáculo mais premiado do Amok Teatro.
Foto: Rafael Saes
A terceira peça, encerrando a Mostra, traz as cartas escritas pelo dramaturgo, ator, poeta Antonin Artaud (1896-1948). A peça de 1998 é a mais antiga da Companhia, o espetáculo demonstra o intenso trabalho de expressão corporal do diretor Stephane Brodt.
Rodez é o hospício onde Artaud passou os últimos anos de sua vida. A ação, novamente, gira em torno da violência. O monólogo corresponde à situação de Artaud em Rodez, julgado louco por “um mundo de deformados”.
Estar louco é vibrar em frequência diferente da maioria, então se o mundo é o dos deformados, ser louco torna-se algo , “é bom estar doente”. Essa desarmonia entre o dramaturgo e o mundo ‘normal’ também se expressa por meio da música desarmônica e pelas gravações de uma voz angustiada. Trechos em francês, sem tradução, são usados em cenas que remetem ao tratamento de choque sofrido por Artaud e a sua psicose. O ambiente soturno é reforçado pela projeção de várias sombras do próprio Artaud, como se as figuras deformes e noturnas fossem os diabretes que lhe confundiam o juízo.
Foto: Rafael Saes
Apesar da expressão vampiresca, podemos perceber, a partir das cartas, um discurso lúcido. A biografia de Artaud é exposta por meio de um espetáculo metalinguístico, já que a pesquisa do grupo influencia, aliás, a montagem do espetáculo. São comuns denúncias de tortura – inclusive envolvendo tratamento de choque – em hospitais psiquiátricos. A violência e o sadismo, alimentados pelo poder ilimitado dos funcionários sobre os pacientes, suscita reflexões acerca de manifestações mais doentias da loucura humana.
Após assistir as três peças percebem-se algumas características próprias do grupo AMOK. Destacam-se aqui alguns destes. Os trechos encenados em outra língua, sem tradução, são uma ótima oportunidade para o contato do público com a cultura do povo representado. Apesar da mensagem desconhecida, percebe-se a energia e a cultura pela língua, música e dança.
Assim como nas duas outras peças, a importância da música é capital. A música pode ser considerada protagonista, já que não serve apenas como moldura da narrativa, mas auxilia na maneira como as histórias são narradas. É interessante pensar nestes elementos como marcadores culturais, que identificam o povo que está sendo tratado.
Por fim, na mesa redonda citada anteriormente, surgiu um comentário surpreendente: “A arte não serve para nada”. Depois de participar da Mostra de Teatro Contemporâneo só posso discordar.


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