sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Butô e macumba


Ator Lee Taylor, Malandro em Foi Carmen / foto: Rafael Saes

Exercício crítico por Marcele Aires

A abertura oficial da Mostra de Teatro Contemporânea de Maringá 2012 na terça-feira, 7, revelou-se corajosa: a tradicional companhia CPT/Sesc, de São Paulo, ofereceu ao público um espetáculo surpreendente. Surpreendente porque Antunes Filho homenageia não apenas o mito Carmen Miranda (1909-1955), mas substancialmente o dançarino e coreógrafo japonês Kazuo Ohno (1906-2010), inovando com a rica mistura de gêneros dramáticos, expressões, gestos, sons e elementos pictográficos que circundam universos tão distintos. Surpreendente porque o diretor consegue, de fato, unir realidades tão peculiares.

A apresentação de Foi Carmen causou espanto porque o diretor soube dosar elementos ao drama sem cair na figura lendária plastificada. O espectador tem diante de si uma Carmen quase “curupira”. O espetáculo merece loas justamente porque Antunes Filho recorreu ao “kit básico” Carmen Miranda com o propósito de fugir do estereótipo. Em outras palavras, Carmen está lá, imponente no palco, com seus balangandãs e brilhos, reforçando os signos do mítico, contudo, a essência que circunda sua narrativa de estrela ultrapassa a aparência. Ao inserir o butô, ou “a dança das trevas”, oriunda da cultura oriental, confere humanidade ao mito, lembrando sua infância, seu percurso de glória e sua morte precoce.

Querido Adão e O que é que a baiana tem?, entre outros sucessos interpretados por Carmen tocados na Rádio Nacional e no estrangeiro se misturam às técnicas do butô. O início da peça traz elementos da dramaturgia oriental ao posicionar três personagens misteriosos, com vestes longas, cujas expressões corporais e faciais são minimalistamente arquitetadas. Prevalece o relance fotográfico, como o detalhe das palmas. O ator Lee Taylor projeta de um modo tão calculado suas palmas que o efeito visual é da precisão do obturador de uma máquina, que se abre e se fecha na altura exata do pescoço, evidenciando o cravo branco preso à lapela.

Mas a poesia do butô não se encerra por aí. A incrível consciência corporal de Emilie Sugai é um dos pontos altos da apresentação. O cuidado com o movimento é o elemento-chave para se entrar no universo de Carmen, a exemplo da projeção das pernas e dos pés em contato com sandálias brilhantes, de saltos homéricos. Certamente a plateia ficou em suspense, prendeu a respiração, encantada com o equilíbrio de quem lapidou a cena, consciente de cada músculo acionado. O olhar de interação com o público foi outra marca da apresentação.

Os movimentos curvados, sempre elípticos, são também uma característica do butô. Desde o ato em que o personagem vestido no melhor estilo Zé Pelintra, de terno branco e chapéu panamá, entra em cena, os movimentos se põem circulares. A Carmen Mascarada, ao espalhar seus badulaques, igualmente realiza o compasso giratório. O circular compreende, por bem dizer, não apenas a movimentação em cena, mas principalmente o conteúdo da peça. Até mesmo o espectador mais desacostumado à mistura de ambientações percebe a riqueza e complexidade sincrética: ao mesmo tempo em que prevalece o butô e toda sua essência Zen, há o rebento da carne espocando em movimentos quase espasmódicos das atrizes, sobretudo nas cenas finais, em que há, claramente, um corpo sendo tomado por uma entidade. Detalhe: ao som de uma enxurrada de taikos, ou os tambores japoneses. Eis um butô macumbeiro, literalmente.

Outro aspecto que marca o sincretismo é o uso das máscaras, tanto apreciadas no teatro japonês, quanto na cosmologia africana. O laço da máscara negra que estampa a face de Carmen em uma das cenas é do formato representando na astúcia dos orixás guerreiros do candomblé. Além desse fato, a Carmen Mascarada tira de um imenso baú sete elementos (colares, panos, cacho de bananas, discos de vinil, pandeiro, uma boneca quase “vodu” e sandálias) e os espalha circularmente no palco, criando um verdadeiro cenário de “despacho”. Sem contar que o sete é um elemento vital tanto na cultura Yorubá quanto na oriental.

As máscaras – tanto as africanas quanto as do teatro Nô – não são apenas elementos que se apresentam no domínio do mistério, mas da representação do desconhecido, do venerado e, portanto, sem nome. Quiçá, seja por isso que o diretor optou por não usar a linguagem verbal, mas a corporal. A figura do Malandro jamais fala frases inteligíveis em português, mas uma língua estrangeira, algo parecido com o polonês ou proveniente do leste europeu. Entre uma ou outra palavra inventada – exercício cênico puro – o ator mistura, caoticamente: “Mamãe eu quero”, “samba”, “banana”, “balangandã”, “Brasil”, “Carmen Miranda” e “Tico-tico no fubá” – enfatizando que a linguagem corporal é a essência da peça.

Os detalhes dos objetos dominam a peça. Discos de vinil limpos à luz fazem pairar no ar a poeira de uma vida que se foi. E a melancolia de serpentinas atiradas ao léu também marca o fim. Como não poderia deixar de ser, Foi Carmen termina ao som convulsivo de uma escola de samba, compassando o trajeto de quem foi música, confete, banana, samba e alegria, mas encontrou a morte tão cedo, aos 46 anos, no auge de sua fase de diva. Ao contrário de Kazuo Ohno, que se foi aos 104 anos. Opostos tão iguais, opostos dilacerantes, como todas as coisas que crescem e respiram nesse mundo. Talvez por isso alguns na plateia dessem risada das palmas dos atores no vazio: porque ao ser humano é muito difícil entender a transitoriedade do silêncio da vida.


Marcele Aires é professora do Departamento de Letras da UEM.

(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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