Atores da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes |
Por Valmir Santos
Qual o papel de um festival
de teatro para a cidade que o encampa? A pergunta é suscitada porque Maringá
está às voltas com a segunda edição da Mostra de Teatro Contemporâneo, até
domingo, uma iniciativa hercúlea de jovens idealistas da empresa Teatro &
Ponto Produções Artísticas. O desafio, ousado, é inscrever a cidade no mapa das
artes cênicas do país e reativar, em alguma medida, o espírito fraterno das
décadas de 1970 e 1980 quando artistas profissionais ou amadores cativavam o
público local para o encontro ao vivo.
Eis a essência milenar do
teatro: como há cerca de 25 séculos, na Grécia Antiga, ou como naqueles
nostálgicos anos 70 e 80 do século XX maringaense, a força imutável dessa arte está
na mediação presencial do ator com o espectador, e vice-versa. Mesmo neste
2012, quando a vida digital só faz explodir em telinhas, gente de todos os
quadrantes do planeta segue se encantando a cada noite mobilizada por aqueles corpos,
imagens, sonoridades e palavras que conformam uma cena. Cidadãos que muitas
vezes não se conhecem, das classes e crenças as mais variadas, se permitem
ocupar o mesmo espaço e partilhar a experiência comum que pode revolver as mais
sinceras e inesperadas emoções demasiado humanas.
Conheci Maringá duas semanas
atrás, ministrando a oficina Cultura da crítica junto a estudantes ou
profissionais de jornalismo, estudantes de letras e professores. Essa atividade
formativa, paralela à programação de espetáculos da Mostra, permitiu-me
vislumbrar a ousadia, nos planos da arte e da cultura, que está em curso neste
território. Quando escrevo estas linhas, encontro-me no interior da Dinamarca,
em Holstebro, acompanhando o Odin Week Festival, um projeto anual organizado
pelo grupo Odin Teatret, do diretor Eugenio Barba, um dos teatrólogos mais
influentes da segunda metade do século XX e inclusive neste XXI.
A modernidade da aprazível
Holstebro, seu espaço urbano planejado e organizado de fato, remeteu um pouco
ao viço da Maringá sessentona que agora se permite abrir à rubrica “teatro
contemporâneo”. Ou seja, não é mais um mero ajuntamento de peças com rostos
conhecidos da televisão, como os interiores do Brasil costumam ser infestados
pelas comédias caça-níqueis (nada contra o gênero!). Quando se assume “teatro
contemporâneo”, coloca-se em evidência o papel da arte pública e, sobretudo, o
apreço pela inteligência do seu espectador, dos seus moradores.
Parte da cenografia da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes |
O que está em jogo na Mostra
é a valorização do pensamento artístico em sua expressão mais sublime: o de
fomentar radicalmente a Arte maiúscula, na qual as raias da invenção não suportam
a mediocrização da vida em pleno ambiente humanista da Cultura também maiúscula,
aquela do presumido horizonte da cidadania, do compromisso com equipamentos
públicos, a formação dos jovens e crianças, a simbiose com a educação, etc.
É um alento que as duas
primeiras edições tenham acolhido criações da lavra do diretor Antunes Filho,
coordenador do Centro de Pesquisa Teatral, o lendário CPT que completa 20 anos.
A atual edição é pródiga na excelência artística ao apostar em repertórios de
um núcleo já consolidado no panorama nacional, o grupo carioca Amok de Teatro,
com três peças, inclusive a recém-estreada Histórias de família, escalada para
apresentações em 2013 nos festivais de Avignon (França) e Edimburgo (Escócia),
e a paulista Companhia Mungunzá de Teatro, com o fenômeno de público Luis
Antonio - Gabriela.
Ou seja, são exemplos de
criações inovadoras em suas abordagens e formas, abrindo ao público local uma
janela para o que de melhor vem sendo produzido em São Paulo e Rio de Janeiro. Na
verdade, a concentração nessas duas cidades do chamado eixo econômico-cultural
constitui ponto falho da Mostra, demasiado paulista, inclusive. Felizmente, montagens
significativas estão se espraiando por outros cantos e capitais do país, como
Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. Para um projeto que se quer incluir,
não dá para louvar só as “estrelas” do Sudeste.
Há pouco citamos o Festival
de Avignon. A edição de julho passado, a 66ª, trouxe como identidade visual a
silhueta de um homem com braço direito erguido, dedo em riste, vociferando com
um megafone na mão esquerda. A jornada francesa sintonizou com o espírito do movimento
global “ocupe” em praças, parques e calçadões. Isso tem a ver também com o
pioneirismo de seu fundador, Jean Vilar (1912-1971). Em meados dos anos 1940, o
ator e diretor francês deslocou o foco tradicional dos edifícios teatrais
parisienses para uma cidade de contornos medievais, cercada por muralhas, ao
sul do país, onde o principal espaço para as artes cênicas era, e ainda é, ao ar
livre: o pátio do Palácio dos Papas, construção gótica usada como residência
pontifícia no século XIV.
Ator da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes |
Foi a partir da iniciativa
de Vilar que a opção não convencional passou a disputar holofotes com o palco
italiano, frontal, influenciando a percepção dos criadores e do público para
todo o sempre. Evocar Avignon aqui tem a ver com a capacidade de um festival fundir-se
à cidade e, mais sublime ainda, afetar a linguagem das artes cênicas que é, ou
deveria ser, em suma, sua razão de existir.
Quando bem-sucedida, a
influência de um festival cênico sobre moradores e visitantes, sua propulsão ao
ato coletivo, à vida comum, traduz a consciência da responsabilidade histórica
da ação cultural. Programar um festival tem muito a ver com ciência e arte, ou
seja, com reflexão e intuição pela equipe liderada por articulador (ou mais de
um) que se espera sensível e informado.
Vislumbramos essa
potencialidade na evolução da Mostra de Teatro Contemporâneo. Em sua definição
para o verbete “festival”, o teatrólogo francês Patrice Pavis afirma que, às
vezes, nos esquecemos de que esse adjetivo também encerra o sentido de festa,
referendando datas ou consagrações religiosas desde a Antiguidade, como Osíris
no Egito e Dionísio na Grécia: Para o estudioso, esse tipo de evento pode
atestar “uma profunda necessidade de um momento e de um lugar onde um público
de ‘celebrantes’ se encontre periodicamente para tomar a pulsação da vida
teatral (...) e, mais profundamente, ter a sensação de pertencer a uma
comunidade intelectual e espiritual encontrando uma forma moderna de culto e de
ritual”. Eis, portanto, a dimensão sagrada dessa arte ancestral que toca à
cidade de Maringá.
Valmir Santos é jornalista e pesquisador de teatro em
São Paulo.
(Artigo originalmente publicado em O Diário, de Maringá, caderno D+, edição de 25 de agosto de 2012, sob o título No mapa da cultura).
Sequência de Verônica Gentilin em Luis Antonio - Gabriela - fotos: Rafael Saes |
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