domingo, 26 de agosto de 2012

O sagrado lugar do teatro na vida dos cidadãos

Atores da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes


Por Valmir Santos

Qual o papel de um festival de teatro para a cidade que o encampa? A pergunta é suscitada porque Maringá está às voltas com a segunda edição da Mostra de Teatro Contemporâneo, até domingo, uma iniciativa hercúlea de jovens idealistas da empresa Teatro & Ponto Produções Artísticas. O desafio, ousado, é inscrever a cidade no mapa das artes cênicas do país e reativar, em alguma medida, o espírito fraterno das décadas de 1970 e 1980 quando artistas profissionais ou amadores cativavam o público local para o encontro ao vivo.

Eis a essência milenar do teatro: como há cerca de 25 séculos, na Grécia Antiga, ou como naqueles nostálgicos anos 70 e 80 do século XX maringaense, a força imutável dessa arte está na mediação presencial do ator com o espectador, e vice-versa. Mesmo neste 2012, quando a vida digital só faz explodir em telinhas, gente de todos os quadrantes do planeta segue se encantando a cada noite mobilizada por aqueles corpos, imagens, sonoridades e palavras que conformam uma cena. Cidadãos que muitas vezes não se conhecem, das classes e crenças as mais variadas, se permitem ocupar o mesmo espaço e partilhar a experiência comum que pode revolver as mais sinceras e inesperadas emoções demasiado humanas.

Conheci Maringá duas semanas atrás, ministrando a oficina Cultura da crítica junto a estudantes ou profissionais de jornalismo, estudantes de letras e professores. Essa atividade formativa, paralela à programação de espetáculos da Mostra, permitiu-me vislumbrar a ousadia, nos planos da arte e da cultura, que está em curso neste território. Quando escrevo estas linhas, encontro-me no interior da Dinamarca, em Holstebro, acompanhando o Odin Week Festival, um projeto anual organizado pelo grupo Odin Teatret, do diretor Eugenio Barba, um dos teatrólogos mais influentes da segunda metade do século XX e inclusive neste XXI.

A modernidade da aprazível Holstebro, seu espaço urbano planejado e organizado de fato, remeteu um pouco ao viço da Maringá sessentona que agora se permite abrir à rubrica “teatro contemporâneo”. Ou seja, não é mais um mero ajuntamento de peças com rostos conhecidos da televisão, como os interiores do Brasil costumam ser infestados pelas comédias caça-níqueis (nada contra o gênero!). Quando se assume “teatro contemporâneo”, coloca-se em evidência o papel da arte pública e, sobretudo, o apreço pela inteligência do seu espectador, dos seus moradores.

Parte da cenografia da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes

O que está em jogo na Mostra é a valorização do pensamento artístico em sua expressão mais sublime: o de fomentar radicalmente a Arte maiúscula, na qual as raias da invenção não suportam a mediocrização da vida em pleno ambiente humanista da Cultura também maiúscula, aquela do presumido horizonte da cidadania, do compromisso com equipamentos públicos, a formação dos jovens e crianças, a simbiose com a educação, etc.

É um alento que as duas primeiras edições tenham acolhido criações da lavra do diretor Antunes Filho, coordenador do Centro de Pesquisa Teatral, o lendário CPT que completa 20 anos. A atual edição é pródiga na excelência artística ao apostar em repertórios de um núcleo já consolidado no panorama nacional, o grupo carioca Amok de Teatro, com três peças, inclusive a recém-estreada Histórias de família, escalada para apresentações em 2013 nos festivais de Avignon (França) e Edimburgo (Escócia), e a paulista Companhia Mungunzá de Teatro, com o fenômeno de público Luis Antonio - Gabriela.

Ou seja, são exemplos de criações inovadoras em suas abordagens e formas, abrindo ao público local uma janela para o que de melhor vem sendo produzido em São Paulo e Rio de Janeiro. Na verdade, a concentração nessas duas cidades do chamado eixo econômico-cultural constitui ponto falho da Mostra, demasiado paulista, inclusive. Felizmente, montagens significativas estão se espraiando por outros cantos e capitais do país, como Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. Para um projeto que se quer incluir, não dá para louvar só as “estrelas” do Sudeste.

Há pouco citamos o Festival de Avignon. A edição de julho passado, a 66ª, trouxe como identidade visual a silhueta de um homem com braço direito erguido, dedo em riste, vociferando com um megafone na mão esquerda. A jornada francesa sintonizou com o espírito do movimento global “ocupe” em praças, parques e calçadões. Isso tem a ver também com o pioneirismo de seu fundador, Jean Vilar (1912-1971). Em meados dos anos 1940, o ator e diretor francês deslocou o foco tradicional dos edifícios teatrais parisienses para uma cidade de contornos medievais, cercada por muralhas, ao sul do país, onde o principal espaço para as artes cênicas era, e ainda é, ao ar livre: o pátio do Palácio dos Papas, construção gótica usada como residência pontifícia no século XIV.

Ator da Amok Teatro em Histórias de família - foto: Rafael Saes

Foi a partir da iniciativa de Vilar que a opção não convencional passou a disputar holofotes com o palco italiano, frontal, influenciando a percepção dos criadores e do público para todo o sempre. Evocar Avignon aqui tem a ver com a capacidade de um festival fundir-se à cidade e, mais sublime ainda, afetar a linguagem das artes cênicas que é, ou deveria ser, em suma, sua razão de existir.

Quando bem-sucedida, a influência de um festival cênico sobre moradores e visitantes, sua propulsão ao ato coletivo, à vida comum, traduz a consciência da responsabilidade histórica da ação cultural. Programar um festival tem muito a ver com ciência e arte, ou seja, com reflexão e intuição pela equipe liderada por articulador (ou mais de um) que se espera sensível e informado.

Vislumbramos essa potencialidade na evolução da Mostra de Teatro Contemporâneo. Em sua definição para o verbete “festival”, o teatrólogo francês Patrice Pavis afirma que, às vezes, nos esquecemos de que esse adjetivo também encerra o sentido de festa, referendando datas ou consagrações religiosas desde a Antiguidade, como Osíris no Egito e Dionísio na Grécia: Para o estudioso, esse tipo de evento pode atestar “uma profunda necessidade de um momento e de um lugar onde um público de ‘celebrantes’ se encontre periodicamente para tomar a pulsação da vida teatral (...) e, mais profundamente, ter a sensação de pertencer a uma comunidade intelectual e espiritual encontrando uma forma moderna de culto e de ritual”. Eis, portanto, a dimensão sagrada dessa arte ancestral que toca à cidade de Maringá.

Valmir Santos é jornalista e pesquisador de teatro em São Paulo.

(Artigo originalmente publicado em O Diário, de Maringá, caderno D+, edição de 25 de agosto de 2012, sob o título No mapa da cultura).



Sequência de Verônica Gentilin em Luis Antonio - Gabriela - fotos: Rafael Saes

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