Daniel Grajew e Lorena Lobato / foto: Rafael Saes |
Exercício crítico por Marcele Aires
"Diverso é meu ritmo
Meu tempo meço por quilômetros de gerânios amarelos"
Meu tempo meço por quilômetros de gerânios amarelos"
Os versos acima, da pernambucana Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, resumem a capacidade expressiva de Lorena Lobato (SP) em Sem conserto. A atriz, com rica formação em teatro, dança e música, consegue criar uma personagem humanizada, que mede seu tempo pela música. São as notas do piano que demarcam suas decisões, suas idas e vindas e suas escolhas.
Eis uma “peça-concerto”. Ao longo do monólogo, um pianista toca obras de consagrados compositores, a exemplo de Liszt, Rachmaninoff, Beethoven, Bach, Mozart, Satie e Debussy. Sem dúvidas, a música funciona como impulso à catarse, aproximando os espectadores de Anna, a narradora-protagonista.
O espetáculo envolve por oferecer um tom bastante intimista: a plateia se vê diante de uma mulher, de preto, narrando episódios de seu destino. A luz como elemento cênico assume importância crucial: não apenas Anna fica à vista – ao seu lado, sempre, imponente, um piano. A mulher e o piano. Dessa relação surge um terceiro elemento: o filho. É ele o mediador da paixão da mãe pela música e os sonidos do instrumento musical.
Ao contrário do grande pianista Rachmaninoff, proveniente de uma nobre família russa, Anna nasceu em uma casa simples, cujos móveis e brinquedos eram carcaças de piano consertadas pelo avô. Entretanto, a narradora-protagonista conhece a música muito antes, já no ventre materno.
O texto/argumento, composto pela própria atriz, é notável. Anna tece consideração a respeito de como educar através da música: seu pequeno filho a reconhece nas canções de ninar, nos exercícios diários e nos treinos exaustivos ao piano; um verdadeiro operário que labuta em sobrevivência. E talvez seja exatamente “sobrevivência” a palavra-chave para decifrar Anna, essa mãe que foge dos padrões ao recusar a escola, retaliando a “arbitrariedade do Estado” como única alternativa de educação. A mãe, que fugiu da Rússia na adolescência em razão da prisão do pai e do avô na Sibéria e de um casamento forçado com um homem mais velho, imigra à Argentina com uma companhia de dança. Lá se vê “amparada” nas garras da prostituição. Engravida de um marinheiro que promete lhe tirar “da vida” – embora não realize o compromisso por jamais encontrar parada.
Sozinha no mundo, Anna vê o talento do filho como única possibilidade de sobrevivência. São os dedos do operário-menino a fonte de renda. A partir desse mote, cria planos e estratégias para transformá-lo num grande pianista. “Feliz mesmo é quem toca a Passionata, de Bethoven; a Rapsódia Húngara, de Liszt; Villa-Lobos; Rachmaninoff...”, discursa a narradora-protagonista, rechaçando a educação escolar, ainda que tanto esforço transforme o menino em uma criança reclusa, tímida e quase “autista”.
De fato, o “menino” – que na peça é representado pelo músico, arranjador e compositor Daniel Grajew –, não se relaciona com o público, pois a mãe o “protege” de qualquer interação. O fato de um homem feito atuar em seu papel ressalta o paradoxo de uma “criança” com esse tamanho todo obedecer cegamente aos desígnios maternos.
Quanto à movimentação, os personagens pouco se locomovem durante a peça – salvo quando Anna deixa o palco para voltar, vez ou outra, com uma dose de vodca na mão. A impressão é a de que a música erige como o único elemento cênico livre, ora se manifestando em acordes melancólicos (quando Anna narra sua infância na Rússia), ora tragicômicos (ao recorrer a expressões populares como: “Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui humildemente pedindo uma contribuição...”).
O que encanta no espetáculo é justamente o poder encantatório da narração aliado à música: eis a história de alguém que encontra no som do piano a possibilidade de transcendência num mundo cada vez mais raso, dominado pela cultura de consumo e pelo emburrecimento coletivo, entorpecido ao som de “Tchu, Tchá” e outras atrocidades do gênero...
Marcele Aires é professora de Literatura da Universidade Estadual de Maringá.
(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).
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