domingo, 12 de agosto de 2012

Absurdo provocativo

Sandra Modesto, da Mungunzá / foto: Bob Sousa

Exercício crítico por Julia Nascimento

Depois de assistir à peça Porque a criança cozinha na polenta, da Companhia Mungunzá de Teatro (SP), sob direção de Nelson Baskerville, é praticamente impossível não dispensar um tempo para refletir sobre o papel do ator na sociedade. A realização de uma peça tão intensa demanda uma boa dose de engajamento político e amor à arte. O teatro é essencialmente político e exige do ator total sinceridade e dedicação à obra. Isso deve ser reconhecido e exaltado.

A exigência é ainda maior quando o ator escolhe levar elementos do circo para a cena. A matéria-prima do palhaço é aquilo que há de mais ridículo no ser humano, por isso é tão fácil o público – acostumado à posição confortável de espectador passivo – ficar profundamente incomodado com a tônica teatro-circo.

Aliás, o circo não aparece apenas nos recursos visuais. É ele que rege o tom da narrativa, tudo é muito rápido, eletrizante, os acontecimentos acontecem concomitantemente. Esta confusão intensa no decorrer do espetáculo é também resultado da sobreposição de planos: realidade, sonho e memória se confundindo indissolúveis, na voz da criança.

Assim, sob o signo de um deus-comedor de mortos, questões complexas como a morte, sexualidade e ditadura se misturem na cabeça de "criança velha" (“porque as crianças na Romênia envelhecem mais cedo”), dando origem à narrativa absurda. Quanto mais o ser humano se afasta das suas raízes metafísicas, mais ele cai num vazio existencial, porém, a peça consegue flertar com o absurdo, sem perder a lucidez crítica.

Uma das críticas mais angustiantes dessa história é a oposição Romênia (casa) e Ocidente (paraíso). A família circense é impelida a fugir de seu país por causa da ditadura e sonha com o paraíso no Ocidente, onde tudo existe em abundância. Contudo, se deparam com outra espécie de miséria, a indiferença: “aqui no ocidente, os cães são mais importantes do que as pessoas”. Resulta o contexto de aporismo no qual a ditadura é a miséria humana e a arte, a única saída. A menina quer ser artista de cinema, a impossibilidade de concretização dos sonhos só pode levar a um único caminho: o suicídio.

Impossível não sair da zona de conforto, o teatro não é placebo. Sob esta perspectiva, é muito improvável que o público pudesse ser mantido intacto. O pai da menina sai do palco e apresenta seus filmes junto à plateia, o jantar é servido e dois espectadores são convidados a subir ao palco. Além disso, existem momentos em que o ‘fazer teatral’ é parte da peça, a metalinguagem. Temos, por exemplo, a disposição e retirada de objetos em cena, mudança de figurino e presença de um músico no palco. O backstage é quase dispensado, já que o ‘como’ é feito é tão importante quanto o ‘que’ está sendo dito.

A presença de vários instrumentos, apresentação de coreografias, construção do cenário e figurino, além da utilização de outros recursos visuais – como projeção de imagens e texto – apontam para um teatro em que tudo vira texto, como acontece na vida. Outro ponto interessantíssimo é a competência do grupo na transposição do texto literário para a linguagem teatral – a peça é baseada no romance homônimo da romena Aglaja Veteranyi (1962-2002).

Afinal, por que a criança cozinha na polenta? A irmã mais velha inventa mil possibilidades para acalmar a menina, mais nenhuma delas consegue aplacar a incompreensão de Aglaja diante de tamanha crueldade. A criança que cozinha na polenta é a criança faminta da Romênia, mas também é a própria menina que não pode compreender o porquê de Deus permitir tanta miséria.

A força do texto Porque a criança cozinha na polenta, associada ao talento e dedicação do grupo, proporciona, além da sensibilidade estética, uma reflexão política atualíssima. Tudo isso o espetáculo realiza sem precisar ser panfletário. Não se pode perder de vista a ideia de que pensar as macroestruturas – relações sociais – é pensar as micros – relações interpessoais. No mais, é certo que tudo o que leva ao autoconhecimento é subversivo (Plínio Marcos), portanto o teatro é altamente subversivo.

Julia Nascimento é graduanda do curso de Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e integrante do grupo de pesquisa Crítica Literária Materialista.


(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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