quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Poética do caos


O ator Marcos Felipe, da Mungunzá / foto: Rafael Saes


Exercício crítico por Cláudia Pegini

Quem vive em meio ao turbilhão de imagens, de informações, de carros, de trabalho, de tudo que estrutura a vida urbana contemporânea, compreende que a multiplicidade de linguagens empregada na dramaturgia da Companhia Mungunzá de Teatro (SP), em Luis Antonio – Gabriela, é coerente. Bem como é pertinente a sensação provocada nos espectadores de que é impossível captar todas as informações propostas, simultaneamente, a cada cena. Estaria aí uma metáfora da impotência do homem frente à compreensão daquilo que o cerca, daquilo que ele vive ou viveu? Provavelmente.

Quando Bentinho afirmou que contaria sua história para “atar as duas pontas da vida”, Machado de Assis conseguiu sintetizar o que motiva um ser humano a se aventurar em revirar o passado e fazer “ressuscitar os mortos”: o desejo de criar um elo entre o que passou e o que há, uma espécie de autocompreensão. Esse parece ser o caso do diretor Nelson Baskerville, autor do argumento e diretor da peça. O mote da obra é um pedido de desculpas de Nelson a seu irmão, Luis Antonio, personagem incômodo da família em virtude de sua homossexualidade latente. Trata-se de uma restauração corajosa das memórias dos envolvidos nesse drama, reconstituição fragmentária que atordoa quem participa e quem assiste à montagem.

A condução da narrativa não se concentra, portanto, na perspectiva de Nelson. Há um mosaico de relatos compondo o enredo. São testemunhos que enquadram um mesmo fato sob ângulos distintos, o que intensifica o teor documental das vozes das personagens: o travesti, o irmão, a irmã, a madrasta, o pai, o amigo, cujo figurino comum são roupas íntimas, denúncia da ausência de véus frente ao que se conta. A verossimilhança ganha contorno, também, em virtude de outros dois recursos marcantes da encenação: a constante referência às datas, citadas e reiteradas nas falas e imagens (a primeira fala é “Um, nove, cinco, três” – ano em que Luis Antônio nasceu); e a extensa documentação dos fatos - são fotos, vídeos, textos, objetos que remetem a um raio x dos acontecimentos.

Fica evidente, no transcorrer da peça que tão importante quanto o que está sendo contado é o como isso se faz. Há uma permanente experimentação de formas na encenação da Mungunzá. Em vez de, por exemplo, a personagem de Nelson/Verônica Gentilin enunciar verbalmente “Eu não soube nascer, mãe”, frase que poderia se tornar piegas, dado o contexto sentimental do filho que exprime sua dor frente à morte da mãe no parto, a fala é levada ao espectador por meio de uma projeção ao vivo da imagem da atriz na tela enchendo bexigas com cada uma das palavras do enunciado (substituindo, inclusive, o sinal da vírgula pela redação do termo “vírgula”), o que leva o público a receber cada termo com gradativa apreensão. É impossível não notar a eficiência de tal estratégia, a frase ganha ressonância e o espectador, perplexo, vê o vocábulo “mãe” ganhar os ares com a bexiga se esvaziando.

Enriquecendo essa trama do fazer teatro, o trabalho dos atores extrapola a atuação, já que são eles mesmos os responsáveis por fazer funcionar todo o arsenal técnico e cenotécnico que congestiona o palco, seja um efeito de luz, a utilização de um letreiro, a movimentação dos móveis, a sonoplastia, enfim, Verônica Gentilin, Marcos Felipe, Virginia Iglesias, Sandra Modesto, Lucas Beda e Day Porto, auxiliados por outros atores da companhia, assumem a condução plena da encenação. Eles mergulham visceralmente nas personagens que atuam, mas projetam também a metalinguagem na denúncia da ilusão, no desmascaramento do jogo teatral.

O que é preciso destacar, por fim, é que o destempero de Gabriela ao injetar silicone em seu corpo, sem pesar as consequências, vivendo um envenenamento em nome de um projeto estético que não é seu, mas de um modelo social que ela anseia atingir, bem como a superexposição a que se submete Nelson Baskerville, tornando público o que seria de foro tão íntimo, faz dessas personagens sínteses universais da obsessão contemporânea pela “beleza” e do ato indiscriminado de se expor - em tempos de reality shows e de redes sociais.

Verônica Gentilin (esq.) e Sandra Modesto / foto: Rafael Saes

Cláudia Pegini é professora da PUCPR, do Colégio Nobel e integrante do grupo de Crítica Materialista na Universidade Estadual de Maringá.


(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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