sábado, 11 de agosto de 2012

Pacto do teatro-concerto

A atriz Lorena Lobato / foto: Rafael Saes

Exercício crítico por Julia Nascimento

O teatro estabelece pacto de ficção entre os envolvidos. O seu poder, entretanto, reside em utilizar a invenção para proporcionar reflexão sobre a realidade. A peça Sem conserto (Lorena Lobato/SP) apresenta, justamente, a relativização dos limites entre realidade e ficção, dentro da narrativa. Joga ora com o monólogo de Anna (Lorena Lobato), ora com a apresentação de Ivan (Daniel Grajew). Essa interessante confusão entre o que é encenação e o que é apresentação atinge o ápice quando Anna se junta à plateia como espectadora do concerto.

É tão convincente a aproximação entre atores e personagens, que no final da peça, alguns espectadores realmente deixaram dinheiro no local indicado por Anna. Confundiram a encenação com uma apresentação de verdade? Pouco possível, o interessante, contudo, é observar a vontade do público de tomar parte no espetáculo.

A peça trata, basicamente, da relação entre Anna e o filho. Ivan é condicionado, desde bebê, a se tornar um pianista, intérprete dos grandes clássicos – Mozart, Bethoven, Liszt, Villa-Lobos.

Chama atenção a dissonância entre os dois personagens. Anna, apesar de delicada, impõe ao filho – o músico-ator é um baita rapaz de quase dois metros – uma autoridade para ele incontestável. Ivan é retraído, não se tem a oportunidade de ouvir a sua voz em cena. É com muita facilidade, portanto, que o espectador julga a mãe por ter imposto ao filho uma vida destinada ao piano. Mas nada na peça é tão simples.

Anna foi uma criança pobre, que, como seu filho, foi condenada a conviver com os pianos. Sua paixão pelo instrumento não foi uma escolha própria, nascera de uma necessidade de sobrevivência. O piano era o seu companheiro.

A impossibilidade de se apoiar nos maniqueísmos se baseia na historicização das personagens. O caráter confidencial da narrativa fica cada vez mais emocionado, quanto mais vodka ela ingere.

O ir e vir entre passado e presente, regidos por música clássica, demonstram como conflitos políticos da Rússia impactaram fortemente a vida desta família. Anna fugiu do seu país para trabalhar como dançarina e prostituta. É hora de refletir a influência dos conflitos externos na subjetividade das pessoas. Breves relatos sobre a biografia de compositores célebres revelam que as suas vidas e obras não pertencem a um mundo ideal, distante do público comum, mas é também regida por problemáticas sociais.

É possível sobreviver de música? A narrativa perpassa questões subjetivas e pragmáticas. A música é paixão, mas é também a maneira encontrada para garantir a sobrevivência.

O relato dos acontecimentos, numa perspectiva histórica, torna o julgamento mais difícil e, de certa forma, desnecessário. O maniqueísmo não serve nesta peça. O piano humaniza as personagens, tornando-as mais complexas. Enfim, o revelar do interior do piano é uma metáfora para a intenção de desnudar as almas das personagens e do público.


Julia Nascimento é graduanda do curso de Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e integrante do grupo de pesquisa Crítica Literária Materialista.


(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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