sábado, 11 de agosto de 2012

Além dos balangandãs

Elenco de Foi Carmen / foto: Rafael Saes

Exercício crítico por Alessandra Sardeto

Um brasileiro responderia facilmente “O que é que baiana tem?”. Os mais desavisados esboçariam uma dança tímida ao ouvir tal trecho, e só pensariam na figura de Carmen Miranda, ou mesmo de uma baiana qualquer. Os mais vividos também cantariam timidamente, dizendo que a baiana tem torso de seda, pano da Costa, bata rendada, saia engomada e sandália bordada. Até então, seria possível resolver essa indagação. O ofício delicado seria responder: o que a baiana não tem? É nessa excludente dicotomia que a peça Foi Carmen evoca à cena a figura notável de Carmen Miranda e mostra o que talvez havia atrás da figura vívida e policromática dessa estrela. A narrativa é inaugurada pela figura da cantora, ainda criança – papel de Mariah Teixeira.

O público em geral admirava a figura mitológica da intérprete. Muito inventiva, criou um estilo particular por meio dos balangandãs, pulseiras de plástico, turbante na cabeça, e de suas atividades performáticas- como as mãos em movimentos espirais. Com espírito vanguardista, desafiava os bons costumes sociais, da década de 30 do século 20. Carmem edificou sua imagem no cenário brasileiro e mundial, dentro do âmbito musical, cinematográfico, fonográfico. Meteoricamente tornou-se uma estrela hollywoodiana. Perpetuou uma imagem. Foi motivo de críticas e vaias, e acusada de ser americanizada. Na peça, essa personagem famosa é alegorizada por uma passista, interpretada por Patrícia Carvalho.

Além da figura pública, existia a Maria do Carmo Miranda, uma (pseudo) brasileira, como outras. Ela encontrava-se emaranhada na fama, com uma imagem fortemente construída, como um produto enlatado, “massa de manobra do tio Sam”- e infeliz no amor. A mulher Carmen Miranda, vivida por Emilie Sugai, aponta grande densidade psicológica. O rosto coberto de preto, o movimento lento e hermético, revela sua obscuridade e tristeza, de alguém que não se conhece como mulher, e encontra problemas em sua construção identitária.

O brilhantismo da peça, representada pelo Grupo de Teatro Macunaíma e Centro de Pesquisa Teatral do Sesc SP – fundado em 1982 e dirigido por Antunes Filho – é pensar sobre Carmen longe dos holofotes e adereços. E por meio da dança, significativo elemento-irmão do teatro, mais precisamente através do butô, vocabulário gestual criado por Kazuo Ohno e conhecido como “dança da escuridão”. É através dessa arte que vemos na peça os movimentos que revelam a profundidade de Carmen.

Em um dado momento, a dança traz um efeito hipnotizante. Uma espécie de ilusão de ótica é criada. A atriz se posiciona de costas para o palco e sua máscara é colocada atrás da cabeça. Os movimentos do corpo são espirais e acompanham o ritmo da música, tornando-se quase unidimensionais. Impossível saber – exceto pela observação dos pés – se a personagens está de frente ou de costas para a platéia. A expressão corporal traduz a escuridão, a tristeza e o ser e parecer em Carmen e na profundidade do butô. A movimentação das mãos, tão característica da “personagem” é isenta – nos momentos fúnebres – é neutralizada junto da figura e identidade exportadora, fortemente marcada e projetada no exterior.

Se não fosse a dança, essa mesma história poderia ser contata por meio da fotografia. Os movimentos lentos; ausência de diálogos, a narrativa não linear; e os objetos postos em cena permitem a criação de quadros fotográficos, que está longe de ser um álbum monocromático e démodé.

Em Foi Carmen a ficção é misturada com a realidade e não se cria uma heroína, nem mitifica um personagem redondo. O espetáculo traz o conflito de identidade (nacional versus individual) de uma personalidade conhecida. A bagagem de conhecimentos históricos é enriquecedor para alcançar um alto nível de compreensão da peça, porém, quem apenas se reporta à figura de Carmen Miranda consegue alcançar, mesmo em mínimo grau, a conexão com o tema e se deixa envolver com a densidade dramática da composição teatral, principalmente a dança.

Alessandra Sardeto é graduanda em Letras e Literaturas correspondentes, pela Universidade Estadual de Maringá.

(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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