domingo, 12 de agosto de 2012

Liberdade inventada

A atriz Lorena Lobato / foto: Rafael Saes

Exercício crítico por Alessandra Sardeto

Música e teatro se combinam, trazendo emoções ao público que tem a oportunidade, raramente concedida, de literalmente conhecer as instalações internas de um piano e apreciar composições de Scriabin, Rachmaninoff, Liszt, Satie, entre outros. Com algumas luzes, dois objetos, e o talento musical de dois atores, o espetáculo cênico Sem conserto cumpre algumas funções do teatro: criticar, questionar, refletir sobre determinada realidade.

O piano está em cena. A história começa a ser contada por uma personagem que tenta o tempo todo convencer a si e ao público de que o trajeto de sua vida foi duro e sem oportunidades. Anna, interpretada por Lorena Lobato, fugiu da Rússia com uma companhia, pois rejeitava o casamento com um homem maduro e, sobretudo, não suportava as mazelas da guerra. Chegando à Argentina, descobriu que fora enganada, e estava em um cabaré. Rendeu-se à prostituição. Em seguida engravidou. Durante a gestação, Anna arquitetou um plano infalível: seu filho seria um grande concertista. Ele respiraria música, assim como ela fez durante a infância na casa de seu avô, um consertador de piano.

A música seria um trabalho como tanto outros que trazem sobrevivência para o homem. De forma militante e imperativa, ela projeta em seu filho, representado por Daniel Grajew, seu desejo de viver de música, amenizar suas frustrações e automaticamente poupa-o (segundo ela) da desgraça de ser livre. Além de ganhar dinheiro, o objetivo é fazer com que ele não fracasse e tenha uma função no mundo.

Anna é a coerção humana personificada. Se por um lado temos a mãe escolhendo por seu filho, temos um filho sem liberdade de escolhas. Ela segue um plano que julga coerente, segundo sua vontade, e traça um caminho para seu filho a fim de evitar uma escolha pior. Só o piano bastava para os dois, o resto era irrelevante, inclusive a opinião do acanhado pianista, que na encenação só interagia com o instrumento.

Para que o menino não se perca ela o exime da educação convencional, do convívio social, da boa alimentação e da felicidade, esta que considera um estado transformado em obrigação pela humanidade. A “russa” chega a indagar se Beethoven seria um grande músico caso seu pai não o tivesse obrigado a estudar demasiadamente, dia a dia. Apesar da postura antiética e amoral, a ex-prostituta nos faz pensar: somos livres? Até que ponto somos livres? O que se pode fazer com o mar de liberdade? Se a sociedade, através da escola, cria as pessoas para o trabalho, por que ela não poderia criá-lo para a música? Não há conserto. Para Anna a liberdade não existe, é uma invenção, ou um labirinto.

O papel da música como arte é discutido. Por que não é valorizada como instrumento de ensino, se é de engrandecimento intelectual, pois exercita inúmeras faculdades do indivíduo, inclusive a de sentir? Por que essa arte não pode ser usada como ferramenta de trabalho?

O monólogo de Anna possui perspicácia, comoção, densidade, argumentação, exagero e uma fina ironia que não provoca humor em toda a platéia. É inegável que Lorena Lobato trabalha com os sentimentos do público. A história narrada sob a ótica de Anna nos faz questionar a veracidade de sua trajetória e de sua índole. Talvez, não conseguiu transformar seu filho em um grande concertista, mas certamente usou o talento dele para contar história e sobreviver, afinal ela poderia estar roubando ou matando, mas está trabalhando honestamente.

Alessandra Sardeto é graduanda em Letras e Literaturas correspondentes, pela Universidade Estadual de Maringá.

(Texto escrito como exercício da oficina Cultura da Crítica, no âmbito da Mostra de Teatro Contemporâneo. Não possui caráter valorativo).

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